domingo, 5 de setembro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (4)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores no primeiro período (1780-1800)


Informado do feito, tratou o governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Menezes, de enviar ao rei D. Pedro II uma carta datada aos sete dias do mês de junho de 1698, com o seguinte teor: “Tendo a experiência mostrado que as carnes de vaca, que se fazem na Nova Colônia do Sacramento, chegam a Portugal sem corrupção [não deterioradas], como pode testemunhar Pantaleão da Cruz, mestre da Nau que partiu desta Praça para a cidade do Porto, o qual levou algumas pipas desta carne, que trouxe da Nova Colônia, e lhe chegou sem corrupção, como consta do seu aviso, o que me obriga a fazer presente a V. Majestade que, quando seja conveniente fazer-se as carnes para as Armadas, na Nova Colônia, se pode fazê-las sem custar à Fazenda de V. Majestade, [nada] mais que a despesa do sal e pipas [ou barricas] em que houverem de ir. [E esta carne, servirá] ainda para o fornecimento dos navios de comboio que saem deste Porto, [o que] poderá evitar, à Junta do Comércio, essa despesa.
Vossa Majestade, neste particular, [determinará] o que mais convier ao seu Real Serviço. [...]”.
As experiências com o fabrico de carnes salgadas na Colônia do Sacramento continuaram; e quando o governador do Rio de Janeiro, Dom Álvaro da Silveira e Albuquerque, queixou-se à Corte dos poucos mantimentos, [carnes e farinha] que estavam em falta naquela Praça [do Rio], pelo fato das pessoas daquela Capitania terem ido para as Minas, recebeu, em 6 de março de 1703, um Parecer do Conselho Ultramarino, que relembrava ao Governador “que as carnes para o abastecimento do Rio de Janeiro e para as naus de comboio poderiam vir da Nova Colônia do Sacramento”.
Três décadas depois do Parecer, Manoel João de Lopo, aos quinze dias do mês de março de 1735, avisava ao secretário do Conselho Ultramarino, Manoel Caetano Lopes de Lavre, “sobre o envio de sal para a Nova Colônia [do Sacramento], necessário à conservação das carnes, a bordo da frota do Rio de Janeiro”.
Retornando aos comerciantes, que do Reino pretendiam levar sal para o Rio Grande, e deste, carnes salgadas para o Reino, vamos encontrar Mateus Vaz Curvelo e seus sócios encaminhando ao Secretário da Marinha e Ultramar uma nova correspondência (30.09.1789) contendo as condições, um pouco modificadas, das enviadas anteriormente à Rainha.
Começavam elogiando a iniciativa do novo comércio em direção ao Rio Grande e que, por isso, haviam comprado “uma Galera, que tem fabricado a todo custo, para ir portar [levar] à Santa Catarina, e uma Corveta [navio de guerra com três mastros] muito forte, e feita de Teca [um tipo de madeira originária da Índia usada na construção de embarcações] nos Estados da Índia, e o fizeram a S. Majestade, do que juntam cópia, sem pensarem que havia vassalos capazes de impugnar os ditos Avisos, por ambição extraordinária, e oporem-se diametralmente à felicidade pública e aos interesses da Coroa, como o são para criar no futuro novas Alfândegas, novos contratos de sal, aumentar o Contrato dos dízimos e do quinto, fazer cessar a importação do Cânhamo e das carnes da Irlanda [grifos nossos].
Estes opositores são os Negociantes [comerciantes] mais ricos, mais poderosos e mais temíveis aos Suplicantes e à Praça [comércio e população] inteira, pela grande roda de amigos opulentos.
V. Exª. conhece bem, que se as carnes do Rio Grande não têm chegado perfeitas, nas desordenadas negociações de Manoel Pinto da Silva, são por defeitos pessoais, não provenientes das carnes. Conhece [sabe] também V. Exª. que, sem a liberdade do sal, não se pode salgar carnes e couros, [...]; mas, se estes Contratadores do Sal, estes gigantes da avareza, não podem ser contestados: os Suplicantes ficarão satisfeitos em arrematarem, desde já, os Contratos do Sal do Rio Grande e Santa Catarina e quebrarem estas algemas cruéis à felicidade pública. E se nem isto pode ser: decida V. Exª, pelo seu raríssimo e conhecido zelo, por nos dar livre um Navio carregado de sal por ano, e que vá daqui [Lisboa] com direção à Feitoria, que os Suplicantes querem estabelecer na Sesmaria que tem pedido a S. Majestade, em diverso requerimento [...]”.
Não conseguimos localizar o requerimento de Mateus Vaz Curvelo quanto ao pedido de Sesmaria, que ele disse ter feito, ou tampouco documento de que tivesse obtido terras no Continente de São Pedro.
Dentre as novidades inseridas na proposta de Mateus Vaz Curvelo e seus sócios estava a disposta na Condição terceira: “Estão prontos a meter ali [no Rio Grande], escravaturados [escravizados] da Costa d’África até Moçambique, e vendê-los fiado para pagamento em duas recolhas [parcelas], cujos valores serão recebidos nos seguintes gêneros: cânhamo, couros, sebo, trigo e farinha”.
Vejamos ainda outras condições: 6ª – Obrigam-se a meter ali as plantas [mudas] de carvalho e pinho, a exemplo do que fizeram os ingleses em Filadélfia e Nova Iorque, o que será de muita utilidade como todos o sabem; 7ª – estão prontos a meter ali, também, as sementes de linho doméstico, vulgarmente chamado de Galego, Coimbrão e Mourisco, assim como outros que vêm da Rússia e Suécia a todos os Postos deste Reino. E obrigam-se a mandar vir para este fim, Mestre de Agricultura e Botânica; 8ª – Temos por objetivo fazer as carnes de moura, à imitação da Irlanda, o que é facílimo, desde que haja Mestre; e mesmo sem este, haverá portugueses que as têm feito no ardente clima da nossa América e que vão à Índia e voltam a Lisboa; 9ª – Lembram-se de fazer fábrica de sola (curtumes), se houver casca adstringente e própria para isso; isto para evitar a dúvida dos couros arderem na seca, ou apanharem chuvas e aparecerem os pelames rotos e perdidos. Ou, pelo menos, os reduzir a salgados como o fazem em Pernambuco; 12ª – Meter, ali, porcos; e fazer carnes de moura para o abastecimento da Marinha, cessando assim o comércio da importação; [...]” (grifos nossos).
Grifamos repetidas vezes o “fazer as carnes de moura, à imitação da Irlanda”, com o propósito de supormos, diante dos documentos até aqui arrolados, que o charque ambicionado pelos comerciantes e autoridades portuguesas era este; e não o produzido em maiores proporções, o de mantas, pelos charqueadores continentinos.
Uma outra questão, que agora nos leva a esclarecer, é a de que quando escrito nosso artigo, “José Pinto Martins, o charque e Pelotas”, publicado pelo Diário da Manhã, em duas partes, nos dias 4/5 e 11 de abril de 2010, dissemos, cautelosamente, que: “Por não conhecermos bibliografia sobre o tipo de charque produzido pelos irlandeses, ficamos em dúvida quanto à técnica usada por eles; mas acreditamos seja o processo de moura, que consistia em acrescentar ao charque embarricado o licor formado pelo sal desfeito, uma espécie de salmoura”.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 05 de setembro de 2010.