sábado, 29 de janeiro de 2011

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (24)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

O estabelecimento dos irmãos Almeida e seus sócios chega ao Continente de São Pedro, trazendo irlandeses e suas técnicas na salga de carnes

Minuta do que importa a isenção dos direitos (taxas e impostos), que requerem nos seguintes gêneros, por ano. A saber:

10.000 arcos de ferro de entrada, cada um 30 réis ..................................................................................... 300$000
2.000 moios de sal, que antes do novo Alvará, que extinguiu este Contrato, era livre de direitos  e permitido a qualquer um importá-lo para o Rio Grande e, hoje, paga de direitos por moio 1.600 réis ......................................................... 3.200$000
O 5º [quinto] dos 10.000 couros no Rio Grande, que são 2.$000 cada um a 700 réis ................................................... 1.400$000
As 40 arrobas de salitre, entrada e saída ..................... 30$000
_____________________
Réis: 4.980$000

Ass: Joaquim Pereira de Almeida & Companhia
Recebido: Manoel Joaquim de Oliveira Lage

O parecer de D. Luiz de Vasconcelos e Souza, encaminhado ao Visconde de Anadia

Foi o Príncipe Regente, Nosso Senhor, servido por Aviso, que V. Exª. me dirigiu em data de 29 de outubro próximo passado, Ordenar que eu interponha o meu parecer sobre a matéria da inclusa consulta da Junta da Fazenda da Marinha, em Requerimento de Joaquim Pereira de Almeida & Companhia, os quais representam que, tendo formado um dispendioso Estabelecimento de salga de carnes no Rio Grande de São Pedro, necessitam, para conservação dele, que Sua Alteza Real o proteja pela maneira que propõem, e consiste, em suma, contratarem com a Fazenda Real, o consumo certo e anual, para uso da Armada, de 2.500 barris de carne salgada a preço de 11.$000 réis cada barril, posto em Lisboa; e a 9$000 réis no Rio de Janeiro, com as isenções de direitos de vários gêneros que importarem em 44.820$000 réis, recebendo, em pagamento, metade em pólvora e a outra metade em cabos da Real Cordoaria, pelo preço que estes gêneros correrem.
Acho que é de toda a razão, e de grande interesse para o Estado, animar um Estabelecimento Colonial, que pode evitar a importação, até agora necessária, de carnes de países estrangeiros; mas, é preciso, quando se trata de favorecer este, e quaisquer outros Estabelecimentos pessoais, por mais úteis que sejam, não o fazerem com sacrifícios e despesas avultadas, ainda, quando a Fazenda Real, estivesse em estado de poder com elas: no caso contrário, sobre serem injustos, são de muito mais consequências para a prosperidade geral, e para o bom equilíbrio da indústria e riqueza nacional, todos e quaisquer favores que são concedidos a algum indivíduo ou Companhia particular, uma vez que há expressa e convencionada exclusão de outros indivíduos ou Companhias.
Toda a isenção de direitos, assim como todo o aumento de preço concedido pela Fazenda Real, sobre qualquer gênero particular, animará, sem dúvida, a sua fabricação; porém, certamente, certos sacrifícios feitos a favor de um particular indivíduo ou Companhia, devem incorrer na censura de prodigalidade; e, unicamente, podem ser acertados, quando o interesse de tais estabelecimentos vier aumentar o rendimento dos Cofres Reais. Se as isenções de direitos, que requerem os pretendentes, e se o preço, que também exigem, é tal, que o prejuízo da Fazenda Real é pequeno, a vantagem não pode bastar para sustentar um estabelecimento, que eles dizem não poder subsistir sem este auxílio; e, se é grande, como de fato acontece, pois só a isenção de direitos importa em 112 mil cruzados, é comprar cara a glória de ter um estabelecimento, que não pode subsistir sem isso; e só desculpável, quando há certeza que os interesses hajam de vir a ser da Fazenda Real, e não de um particular; e além disto, animar tão generosamente aquela salga de carnes, pode vir a desanimar quaisquer outras que se podem estabelecer em qualquer outra Colônia, e mesmo no Reino, especialmente no Algarves, onde é fácil importar de Barberia [?], vivas, pelos preços mais cômodos, muito grande número de reses, que depois de gordas, com prados naturais, ou artificiais, se podem ali salgar e vender por menores preços do que as carnes da Irlanda.
Se os pretendentes requeressem, que se lhes fizessem algumas encomendas de carnes salgadas, e que, depois de se reconhecer, que estas são de tão boa qualidade e duração como as da Irlanda, fossem sempre preferidas às de fora, por preços iguais, ou ainda maiores, teria tal pretensão, toda a aparência de justiça, e desta mesma opinião, é o Intendente da Marinha, na sua informação, pelo que se acha acertado, que se lhes encomendassem, primeiramente, só 1.000 barris, pelo oferecido preço de 11$000 réis, no que também concordo. E, a este parecer, em substância, se encosta (aproxima) a Junta. Esta, porém, acha que depois se pode vir a admitir o Contrato, por tempo de 9 anos, no que não vejo interesse algum para a Real Fazenda, antes, prejuízo a risco, assim porque, o consumo da carne salgada não pode ser avaliado ao certo cada ano, dependendo das embarcações, que, por muito variáveis circunstâncias, podem necessitar se armar, ou desarmar; como por dever se recear, que, deste modo, seja mal provida a Marinha; nem vejo necessidade de tal convenção para se sustentar o Estabelecimento; e só, sim, uma exclusão, ou um encontro prejudicialíssimo a outros especuladores, ou estabelecimentos desta natureza.
A forma de pagamento, que exigem, é justa e útil à Fazenda, posto que não de tantas vantagens, quanto poderão parecer, porquanto a pólvora e cabos têm constantemente muito boa venda, sem que necessitem a certa saída, com que estes Negociantes convidam a adotar o seu projeto; e por consequência, vem a ser quase o mesmo que pagar com estes gêneros, ou com dinheiro, uma vez que seja sempre com os largos prazos, que são propostos pela Junta.
É quanto me permite dizer a brevidade do tempo, que posso, escassamente tirar para este, e para outros muito negócios, com o fim de satisfazer às Reais Ordens, que V. Exª. me participa.
Deus guarde a V. Exª. Lisboa, em 15 de novembro de 1805.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 30 de janeiro de 2011.

sábado, 22 de janeiro de 2011

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (23)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

O estabelecimento dos irmãos Almeida e seus sócios chega ao Continente de São Pedro, trazendo irlandeses e suas técnicas na salga de carnes

O patrimônio parcial dos Almeida e seus sócios

A sociedade formada pelos irmãos Pereira de Almeida e outros sócios era proprietária, dentre outras, das seguintes embarcações: bergantim Ânimo Grande, navio Spike, navio Nossa Senhora da Lampadosa e a galera Providência, todas envolvidas em constantes viagens entre o eixo Lisboa-Rio de Janeiro-Rio Grande de São Pedro.
Embora não tenhamos conseguido documentar que a escolha da carne salgada recaiu sobre a amostra enviada pelo Estabelecimento dos Almeida, podemos, através do documento expedido pela Real Junta da Fazenda da Marinha, deduzir que tal aconteceu, pois, “Por Aviso de trinta e um de julho próximo pretérito [1804], do Conselheiro de Estado, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha, Ordenou Vossa Alteza Real, que esta Real Junta consultasse com efeito o requerimento de Joaquim Pereira de Almeida & Companhia, em que representa: Que tendo estabelecido no Rio Grande de São Pedro uma salga de carnes, à maneira das da Irlanda, curtumes de sola, fábrica de queijos e refinação de sebo, tudo à custa de enormes despesas com este vasto estabelecimento e com os Mestres [irlandeses], que para este fim mandaram da Europa; e que todos os ramos da sua instituição prosperaram de tal sorte, que a Esquadra de Vossa Alteza Real, tanto nos mares daquele Continente, como nos deste Reino, se tem provido das carnes daquela Manufatura, com geral aprovação dos Comandantes, que nas suas Contestações as consideram, se não superiores, iguais às da Irlanda, pelas quais Vossa Alteza Real, até aqui, exportava (desembolsava) consideráveis somas” (grifos nossos).
Dando continuidade ao documento apresentado à Junta, pelo estabelecimento de Joaquim Pereira de Almeida & Companhia, argumentam estes que: “Contudo, como tais empresas são, no princípio, sujeitas ao capricho dos Compradores, que, habituados com os gêneros de fora, recusam os Nacionais, conquanto uma longa experiência os não convence da sua igualdade ou melhoria, não pode este Estabelecimento permanecer sem um consumo certo e determinado, para com o seu produto fazer face ao avultado custeio e quantiosos avanços que, por muito tempo, devem ficar amortecidos.
A Marinha Real proveu-se, até aqui, do produto estrangeiro, com consideráveis partidas de carnes salgadas, que lhes são necessárias para o seu gasto [consumo]. As da dita Fábrica, dos Suplicantes, têm sido aprovadas no Arsenal; parece, portanto, que devem ser preferidas às de fora; pois, por este meio, promove Vossa Alteza Real um ramo útil da indústria nacional. Propaga, na América, esta sorte de estabelecimentos com que este Reino poupará grande cabedal, que, por este artigo, exporta para o consumo da navegação portuguesa.
Por estes motivos, dignos da consideração de Vossa Alteza Real, propõem os Suplicantes o Contrato, no qual juntaram as condições para se lhes tornar no Arsenal, a porção que se possa consumir na Marinha Real. O modo de pagamento, que estipulam, não é em dinheiro de contado [à vista]; e sim, uma permuta por pólvora e cabos, que ao mesmo tempo que alivia a Fazenda de Vossa Alteza Real, porque vende os seus efeitos e compra por menor preço, e sem desembolso pecuniário, promove o adiantamento e progresso de duas Fábricas Reais.
Sem este auxílio, debaixo de todos os aspectos, útil aos Suplicantes e vantajoso à Fazenda de Vossa Alteza Real, e ao público em geral, não pode subsistir o Estabelecimento dos Suplicantes no Rio Grande, que por isso serão obrigados a abandoná-lo, chamando os Mestres e perdendo os incalculáveis fundos que empregaram nesta Empresa, por insinuação de Vossa Alteza Real. Portanto: Pedem a Vossa Alteza Real seja servido acudir a esta ruína, aprovando o Contrato que oferecem.

O Contrato proposto

Joaquim Pereira de Almeida & Companhia podem fornecer ao Real Arsenal da Marinha até 2.500 barris de carne de vaca salgada do Rio Grande, de seis arrobas cada barril, cuja salga é feita pelos Mestres irlandeses, que ali têm. As carnes são da melhor qualidade, aos moldes das da Irlanda.
O preço do barril, posto em Lisboa, é de 11$000 [onze mil réis]; e no Rio de Janeiro, para ser carregada nas embarcações de S. A. Real, aonde podem vir por lastro e até servir para o uso das mesmas no Brasil, a 9.000 réis, tudo debaixo das seguintes condições:
Que a Real Fazenda deve receber aquela quantidade que importar, isto, pelo tempo de nove anos; e a dita carne, deverá ser examinada no ato da entrega.
Que eles, ditos, Joaquim Pereira de Almeida & Companhia, poderão livremente mandar vir de fora, até dez mil arcos de ferros de pipas, quarenta arrobas de salitre e navegar estes dois gêneros da mesma forma para o Rio Grande, e ainda com escala no Rio de Janeiro; assim como remeterem desta [Praça] dois mil moios de sal, debaixo da mesma isenção e navegação, e isto tudo em cada ano, vindo e indo com as competentes Guias, que assim o provem.
Que este Contrato deverá ter o seu efeito seis meses depois que chegarem ao Rio de Janeiro os Decretos assinados por Sua Alteza Real; se, contudo, antes deste tempo, eles, Contratadores, tiverem alguma porção pronta, se lhes será recebida logo que apresentarem para ser examinada.
Que a eles, Contratadores, não lhes serão quintados [cobrados o quinto] dos couros das reses que matarem, até a quantia de dez mil por ano; e isto, depois de findo o atual Contrato, pois, que está contratado, e não pode, em consequência, ser alterado; mas sim, deve ter lugar na mesma Arrematação.
Que eles, Contratadores, serão obrigados a receberem em pagamento da dita carne metade em pólvora das Reais Fábricas de S. Alteza Real, e metade em cabos da Real Cordoaria; e isto, pelo preço que estiverem vendendo no tempo e mês que fizerem a entrega; e demonstrado assim o terem feito, pelos Conhecimentos que apresentarem, e a cuja apresentação será logo entregue a pólvora e os cabos; e isto, pelo valor da carne, que aqui entregarem; e, a que for, no Rio de Janeiro, caso tenha lugar, lhes será ali paga pela Junta da Real Fazenda, ou por quem tiver a seu cargo os mais pagamentos das Reais Esquadras; e isto, um mês depois da entrega. N. Bem: persuadem-se que a Real Fazenda gasta anualmente nesta porção de 2.500 barris de carne, pouco mais ou menos; e a tem comprado, há anos, pelo preço de doze a dezesseis mil reais da Irlanda, Dinamarca, América e outros.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 23 de janeiro de 2011.

domingo, 16 de janeiro de 2011

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (22)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

O estabelecimento dos irmãos Almeida e seus sócios chega ao Continente de São Pedro, trazendo irlandeses e suas técnicas na salga de carnes

Com a intenção de tornar mais atraente e compreensível, resolvemos sequenciar todas as informações recolhidas sobre o projeto de instalação de um grande estabelecimento saladeiril no Continente de São Pedro pelos irmãos Almeida e seus sócios, quebrando, desta forma, a metodologia que até então adotáramos; qual seja, a cronológica.
A primeira referência feita a este estabelecimento, pela historiografia sobre charque e charqueadas no Continente de São Pedro, parece-nos estar no artigo “Salgas de Carne”, de autoria do médico, genealogista e historiador Paulo Xavier (1974, p. 9).
Neste artigo, nos diz Paulo Xavier o seguinte: “[...] em correspondência datada em 22-IV-1799, eram recomendados pela Corte ao Vice-rei um grupo de técnicos pela sua habilidade ‘de salga carnes e curtir couros, fazer manteiga e velas de sebo...’”.
Efetivamente, isto consta em uma carta da Corte para o conde de Rezende, onde se determina “facilitar a passagem dos irlandeses João Whechy, Diogo Whechy, Pedro O’Donell e Florêncio Mac Carthy que vão ao Rio Grande salgar carnes e curtir couros, fazer manteiga e velas de sebo”.
E acrescenta Xavier: “Estamos assim em presença de pioneiros quem sabe, da industrialização da matéria prima da campanha riograndense.
Não há dúvida que a empresa surtiu efeito, apesar das poucas informações que até agora a respeito conseguimos documentar.
Encontramos, à propósito, registrado no ‘Almanaque de Porto Alegre’ (1808), de Manoel Antônio de Magalhães, uma notícia que tem ficado à margem das preocupações de muitos historiadores. Na verdade, se trata de um dado importante para a história econômica riograndense.
Parece que a preocupação dominante, de modo geral dos autores, têm sido a absorvente linha política em prejuízo, às vezes, da apreensão global de fato sociológico”.
A seguir, Paulo Xavier reproduz o texto encontrado no “Almanaque”, que aqui deixamos de reproduzir, porque, sobre tais informações, trataremos posteriormente.
Encerrando o Artigo, diz Xavier que “Este é sem dúvida um tema de muita significação para o estudo do processo econômico do Rio Grande do Sul [...]”.
Bem posterior ao artigo de Paulo Xavier, e sem deste termos tido conhecimento, é o nosso trabalho “Sal, escravidão e charque”, publicado na Imprensa, por longo, em dez partes; no qual, dissemos o seguinte sobre o estabelecimento dos irmãos Almeida e seus sócios: “[...] tiveram liberados, por Sua Majestade, a seguinte ‘Lista dos instrumentos e mais acessórios para os Curtumes e Estabelecimento, que José Rodrigues Pereira de Almeida manda estabelecer no Continente do Rio Grande, por permissão de S. Majestade, e que a mesma Senhora, se digna mandar dar livres de direitos [impostos e taxas] no Consulado de saída e entrada na Alfândega do Rio de Janeiro, por onde eles devem ir embarcados; para o Mestre salgador: doze cutelos de ferro, oito dúzias de facas de ferro, seis luvas de couro com pregos, um barril de salitre, doze regadores de ferro e uma balança grande com seus competentes pesos. Para o Mestre curtidor: dezoito raspaduras de ferro, seis rebolos de amolar os ferros, dois barris de [ilegível] de sapatos e uma pedra para [ilegível] a casca. Para o Mestre de velas de sebo, e manteiga: dois engenhos para fazer a manteiga, dois arados, de nova invenção, para uso da lavoura, um parafuso de ferro para a prensa, três caldeiras de ferro, de maior a menor, uma caldeira pequena de cobre, doze panelas pequenas de cobre, sessenta formas de estanho para as velas, três arrobas de fio para os pavios e com arcos de ferro para as tinas.
Os mestres curtidores, salgadores e de fazer manteiga e velas, todos de nação irlandesa, são os seguintes: João Schechy, Diogo Schechy, Pedro O’Donnel e Florêncio Macarthy, caixeiro e intérprete do grupo” (MONQUELAT, 2009, p. 13).
A “Lista dos instrumentos”, contendo os utensílios necessários e o nome dos irlandeses, estava apensada a uma série de outros documentos encaminhados ao Conselho Ultramarino no ano de 1793. No entanto, segundo documento apresentado por Paulo Xavier, é apenas em 22 de abril de 1799 que os irlandeses, ao que tudo indica, chegaram ao Brasil.
Embora não saibamos quando, é certo que entre os anos de 1800 e 1801, o Estabelecimento dos irmãos Almeida e sócios já estava funcionando no Continente, e a prova quem nos fornece “é o chefe dos armazéns do Arsenal Real da Marinha quando, em Lisboa, aos sete de agosto de 1801, envia ofício ao Visconde de Anadia com o seguinte teor: ‘Tendo vindo na nau Princesa da Beira, uma segunda amostra de vaca salgada do Rio Grande, remetida por João Rodrigues Pereira de Almeida, o qual encarregou da dita salga a dois irlandeses, que daqui mandou ir, para o mesmo efeito, com o fim de prover o Arsenal Real da Marinha do dito gênero; assim como o pretende fazer Alexandre Inácio da Silveira, que entregou a primeira amostra nestes Armazéns. Tenho a honra de remeter a V. Exª. uma amostra de vaca [salgada], que ultimamente chegou, por me persuadir ser necessário decidir a qual dos dois se deve dar preferência. Nestes Armazéns, se acha ser melhor a segunda amostra [a do Estabelecimento dos irmãos Almeida]; porém, eu passo a remeter um barril ao Vice-almirante, Antônio Januário do Valle, para ele mandar fazer as experiências necessárias’.
Estranhamos que o autor do ofício, Januário Antônio Lopes da Silva, tenha feito referência a dois irlandeses, quando sabemos que a permissão concedida por Sua Alteza Real, a Rainha, foi para que viessem ao Rio Grande, além do intérprete, três irlandeses” (MONQUELAT, 2009, p. 8).
Um outro aspecto que julgamos interessante observar é quanto a preferência demonstrada entre as duas amostras de carne salgada enviadas àqueles Armazéns; a de Alexandre Inácio da Silveira, com sua técnica continentina, e a dos irmãos Almeida, cujos mestres eram irlandeses. Considerando que a escolha feita nos Armazéns do Arsenal da Real Marinha recaiu sobre a carne preparada pelos técnicos irlandeses e não tenha sofrido influência político-econômica alguma, podemos concluir que, o “se acha ser melhor a segunda amostra”, queria dizer: de melhor qualidade. Portanto, o charque produzido até então, pelos continentinos, não havia atingido um apurado nível técnico, mesmo tendo alcançado duas décadas de fabrico.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 16 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A INSTRUÇÃO E A EDUCAÇÃO EM PELOTAS, NOS TEMPOS DO CÓLERA*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

A visita do cólera à província do Rio Grande do Sul aconteceu, por primeira vez, no ano de 1855.
Embora de estada curta, grosso modo, de outubro de 1855 a janeiro de 1856, essa epidemia, que reinou em várias províncias do império, ceifando milhares de vidas, alterou, e profundamente, o cotidiano dos súditos do imperador D. Pedro II.
Por outro lado, a “peçonha asiática” ou o “mal do Ganges”, como foi denominado, fez ver, às autoridades da época, quão frágil e vulnerável eram suas defesas e práticas de políticas públicas; quão despreparados eram seus projetos de saneamento urbano; bem como, serviu para mostrar os maus hábitos e a falta de higiene, que imperava entre o povo brasileiro.
Ainda que, por capricho, não tenha visitado anos antes (1848-49) o Brasil, esteve nas vizinhanças, atingindo uma das Guianas. Era o aviso, o sinal de uma visita anunciada e que, em breve, estaria reinando na corte do Imperador.
O cólera, como era de hábito, chegou ao Pará a bordo do vapor Defensor, oriundo da Europa e trazendo “colonos” portugueses embarcados na cidade do Porto (Portugal) para trabalho, em regime de semiescravidão, na Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas.
Do Pará, seguiu viagem, e sempre apoiado pela negligência, imperícia e imprudência das autoridades provinciais, mais preocupadas com os interesses econômicos de suas províncias, e seus, do que com o bem estar e a saúde de seus governados; fazendo escala em Pernambuco, Bahia – onde fez o maior número de vítimas – e outros estados, até chegar à corte. Da corte, às províncias do sul, pegou carona no vapor Imperatriz até a cidade de Rio Grande, onde desembarcou, para, em seguida visitar Pelotas, Porto Alegre, Jaguarão e outras localidades circunvizinhas.
Nas cidades de Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas e Jaguarão, por serem mais populosas, fez o cólera maior número de vítimas. E entre essas vítimas estiveram, em maior e expressiva proporção, os pobres e os escravos.
A causa, ou causas dessa mortandade entre os pobres e os escravos, ainda que evidentes, não seria descabido relembrar que as péssimas condições de vida, e aqui estamos falando de moradia, alimentação e falta de recursos médicos, dentre outras tantas dificuldades, foram fatores determinantes para que esses tivessem suas vidas ceifadas por uma moléstia, até então, desconhecida.
Em Pelotas, a região mais atingida foi a das charqueadas localizadas na costa do Arroio. Ali, o cólera encontrou o ambiente propício; pois, nada poderia ser tão favorável, por insalubre, quanto o ambiente de uma charqueada. Ninguém tão qualificado para as funestas intenções do cólera, quanto o escravo, e, principalmente, o escravo de charqueada. Um escravo subnutrido e sobrevivendo em lugares sem as mínimas condições de habitabilidade e higiene.
As estatísticas e os boletins deixados pelos presidentes de província do período imperial, sobre o reinado do cólera, em sua primeira visita ao Brasil, são muitos e indicam que, milhares de pessoas foram vítimas fatais do cólera; mas, nos perguntamos: nesses dados podemos confiar? Podemos acreditar em tais informações, depois de sabermos que centenas e centenas de corpos foram queimados, ou enterrados em valas comuns, por não haver quem os pudesse ou quisesse enterrar? E as centenas de cemitérios improvisados em lugares descampados e fundos de quintais, tiveram pessoas presentes que, sobre tais mortes, lavrassem atestados ou registros daqueles óbitos?
Teriam os senhores de escravos arcado com as despesas de tratamento? E tais despesas eram cobradas. Ou com as despesas de sepultamento, (e para estas havia uma tabela) de seus escravos? E os escravos fugidos das charqueadas, que fim levaram? Sim, porque “a escravatura está fugindo, e que ali se propaga, que ela se dirige a esta cidade [de Rio Grande], e à vila de São José do Norte. A ser assim, chamamos a atenção de nossas autoridades; e bem como às daquela vila, para que semelhante gente não venha empestar lugares menos infestados”.
Essa “semelhante gente”, da qual falava a notícia, que aqui reproduzimos em parte, eram os escravos que, aproveitando-se do caos gerado pela epidemia, fugiram das charqueadas de Pelotas. Soube o presidente da província o destino deles, e se esses “empestados” morreram, fazem, por acaso, parte dos 446 coléricos, que as estatísticas oficiais apontam como o número de mortos na cidade de Pelotas?
Estas, e outras questões, são temas do livro que estamos concluindo sobre a primeira visita do cólera ao Brasil, com especial ênfase às cidades de Rio Grande, Pelotas e Jaguarão; pois, este artigo tem como propósito aproveitar o material recolhido, para aquele objetivo, um assunto que lá não estará, por falta maior de dados: a educação e a instrução nos tempos do cólera ou, e principalmente, a influência da epidemia no cotidiano do Colégio União, colégio este, “estabelecido na cidade de Pelotas, na rua Alegre [atual Gonçalves Chaves] canto da do Poço [atual Sete de Setembro]”.
De acordo com o diretor, “e único chefe do estabelecimento”, Antônio de Vasconcellos Vieira Diniz, aquele colégio interrompeu seus trabalhos escolares no mês de novembro de 1855, em virtude de ordem superior por causa da epidemia, “que então reinava”; mas, informava o diretor do estabelecimento, que este, “começará de novo a funcionar, no dia 8 do corrente [fevereiro de 1856]”.
Aproveitando o anúncio do retorno às aulas, explicou o diretor do Colégio que, tendo em vista “a suba de ponto [cálculo com as, ou das] despesas com o custeio do mesmo estabelecimento” desde a sua instalação, já pela exorbitante alta dos gêneros de primeira necessidade; já pelas despesas extraordinárias, feitas no “acrescentamento” de comodidades para os alunos; e, também, pela ajuda de custo da ida e volta, a um professor, que foi à corte, por conta do colégio, habilitar-se no método de leitura do Sr. Castilho¹: “o diretor vê-se na contingência de fazer algumas alterações nos preços até hoje regulados [cobrados]”.
Informava o diretor que o colégio continuava a receber pensionistas; meio-pensionistas e externos, sob as seguintes condições; ENSINO PRIMÁRIO: pensionistas, 25.000 réis; meio-pensionistas, 16.000 réis, e externos, 5.000 réis. O ensino primário, ou “esta secção”, compreende o ensino de primeiras letras, gramática nacional, aritmética até quebrados, doutrina cristã, noções de história sagrada, história e geografia pátria.
Já, o ENSINO SECUNDÁRIO: se cobraria dos pensionistas, 32.000 réis; dos meio-pensionistas, 16.000 réis e dos externos, 10.000 réis. “Compreende esta secção”, ou o ensino secundário, os preparatórios para qualquer das academias do império, ou para a carreira social, a que o aluno “tenha de dedicar-se”.
Os alunos pensionistas tinham direito aos princípios gerais de qualquer aula de Belas Artes; mas pagariam 5.000 réis mensais, logo que passassem “destes princípios” e quisessem dedicar-se, com especialidade, a alguma delas.
O Colégio encarregar-se-ia da lavagem da roupa dos pensionistas, cujos pais o quisessem, mediante a retribuição de 5.000 réis mensais.
As pensões e meia-pensões seriam pagas adiantado, sem abatimento algum por férias ou falhas, a cada trimestre; porém, no caso de moléstia que excedesse o tempo de um mês, o colégio perceberia somente a metade do valor da pensão. Os externos pagariam mensalmente e sob as mesmas condições.
Cada aluno, pensionista, pagaria na ocasião da entrada, e de uma única vez, a quantia de 32.000 réis; tanto para o fornecimento dos objetos de ensino, (à exceção de livros), como para a ocupação de marquesa (espécie de canapé, que serve de camilha, com fundo de sola, ou de palhinha, estofado, etc.), mesa, mocho, colchão, travesseiro, bacia e lavatório, durante o tempo que demorasse no colégio.
Além do enxoval, que deveria ser simples, modesto e marcado com as iniciais do nome do aluno, o colégio havia adotado um uniforme econômico; e cada aluno teria para seu uso um espelho, um pente fino e de alisar, uma escova de dentes, uma escova de fato (as três peças exteriores do vestuário do homem, calças, colete e casaco), uma escova para cabelos, uma tesoura para unhas e uma bacia para banho.
Os alunos que adoecessem, e fossem tratados no colégio, pagariam as despesas de médico e de botica (farmácia).
Além dos professores existentes, o Diretor “tem em vista contratar outros, que coadjuvem àqueles quando as circunstâncias o exigirem, para o que não poupará sacrifícios, como até agora tem feito”.
E, finalmente, o diretor informava que, desejando dedicar-se exclusivamente à instrução e educação dos alunos, encarregara a pessoas de reconhecida capacidade, “o regime econômico e a escrituração do colégio; bem como, uma longa prática no árduo exercício do magistério, o habilitava a esperar a concorrência e coadjuvação dos Srs. Pais de família, para a manutenção e prossecução [ato de prosseguir, continuar, etc.] deste útil, e importante estabelecimento”.
Portanto, o colégio estava franco para todas as pessoas decentes, que o quisessem visitar e verificar por si, as vantagens oferecidas.
O motivo do Colégio União ter prorrogado o início das aulas deu-se pela Ordem do “Exmo. Sr. presidente da Província”, que através do Inspetor da Junta de Higiene, Dr. França, determinou aos 9 de janeiro de 1856 que “fica proibido lecionar-se em todas as aulas e colégios, até segunda ordem”.


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¹ O “Sr. Castilho”, ao qual fez referência o diretor do Colégio União, é Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) que, em 1850, fez publicar com a denominação de Leitura repentina, o primeiro esboço do método, que não era, ainda então, mais do que a ampliação do método de LEMARE, ao idioma português, desenvolvido, ampliado, e melhorado consideravelmente. Já no decorrer do ano de 1853, foi publicada a segunda edição, com o título de Método Castilho, demonstrando, na Introdução, que a obra pelos novos fundamentos, ao mesmo tempo filosóficos e práticos em que se reconstruíra, já se podia e devia considerar nacional (vide outras informações sobre este tema na obra: Carta a um professor de Aldea sobre a leitura repentina. Lisboa; Typografhia de A. J. F. Lopes, 1853.). Em 1855, Antônio de Castilho veio ao Brasil para divulgar seu “Método de Alfabetização”.
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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 13 de janeiro de 2011.

sábado, 8 de janeiro de 2011

SILVA PAES E A PRIMEIRA MISSA CELEBRADA NO SOLO DO RIO GRANDE DE S. PEDRO


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Há, na Biblioteca Nacional de Portugal, um manuscrito com 94 folhas, que é de lamentar ainda hoje estar com o “acesso restrito”.
Este manuscrito tem como título: Diário da viagem que fez ao Rio da Prata o Coronel Luiz de Abreu Prego no ano de 1736, com a esquadra que Sua Majestade mandou em defesa da grande Praça da Colônia do Sacramento. E por autor, Um curioso que foi na mesma esquadra. Tal manuscrito abrange os anos de 1736 a 1738.
Soubéssemos o conteúdo do manuscrito do anônimo “curioso”, talvez tivéssemos respostas a algumas indagações, que vêm nos inquietando no decorrer do nosso trabalho maior, que é O desbravamento do Sul e o povoamento de Pelotas.
Dentre estas, o que seja bastante provável – e são muitos os indícios – é que a fundação do Presídio de Jesus, Maria, José, no Porto do Rio Grande se deva ao fato de não ter sido possível estabelecer uma tal fortaleza no Porto de Maldonado, um dos objetivos da expedição de Silva Paes ao Rio da Prata.
Tivesse Maldonado as condições necessárias, ou Silva Paes tempo para contornar as adversidades lá encontradas, os domínios de Sua Majestade ficariam maiores e mais próximos da Colônia do Sacramento, cerne dos interesses econômicos da Coroa Portuguesa.
No entando, frustradas as tentativas de tomar Montevideo ou estabelecerem uma fortificação mais próxima da Colônia do Sacramento, tratou o Brigadeiro, depois de socorrer o Governador da Colônia com infantaria, de pôr em prática uma espécie de plano B, que era o desembarque no Porto do Rio Grande de São Pedro.
Saiu Silva Paes do Porto de Maldonado no dia dez de fevereiro de 1737, dia em que além de escrever ao Coronel Luís de Abreu Prego, nomeia o Padre Jeronimo Pereira, capelão das tropas, nos seguintes termos: “José da Silva Paes, brigadeiro da infantaria dos exércitos de Sua Majestade e comandante das tropas do Rio Grande de São Pedro, pelo mesmo Senhor: Como, para a celebração da missa, que se deve dizer à guarnição e povoadores do Rio Grande de São Pedro, como a Sua Majestade tem determinado, e se necessita de sacerdote de vida exemplar e bons costumes, nomeio o padre Jerônimo Pereira para capelão da dita guarnição e mais povoadores, e para lhes administrar os sacramentos, enquanto não chegarem os padres barbonios [a palavra correta é barboneos] ou o Ilustríssimo Bispo do Rio de Janeiro der providência, por concorrerem nele todos os requisistos sobreditos. E receberá de soldo seis mil réis por mês, com as mesmas obrigações que têm os capelães dos mais terços [antigo corpo de tropas; regimento]. Que o Comissário da Expedição lhe forme seu assento na primeira plana, na forma do estilo. Porto de Maldonado, 10 de fevereiro de 1737. Eu, Antônio de Noronha da Câmara, Comissário da Expedição, a subscrevi”.
Os padres barboneos aos quais Silva Paes se refere, eram dois frades capuchos (religiosos de uma das ordens de São Francisco, muito austeros na regra), que Sua Majestade havia enviado com a Expedição. Eram estes Frei Antonio de Perugia e Frei Anselmo Castelvetrano, com os quais Silva Paes e André Ribeiro Coutinho tiveram algumas desavenças ao ponto de instaurarem inquérito contra eles.
Bem, mas voltando ao dia dez de fevereiro, dia em que Silva Paes levantou âncoras e partiu de Maldonado com destino ao Rio Grande, e que, depois de seis dias de viagem, diz “descobri a Costa, em altura dos 32º e 32 minutos, que é a mesma em que se acha este Rio; [...]. Estive três dias esperando alguma aragem, que me pudesse fazer avançar para o desembarque da gente e dos demais que trazia, antes que entrasse algum tempo, que aqui são muito freqüentes, que nos obrigasse a largar a Costa”.
Ainda que neste documento em que Silva Paes nos informa ter descoberto a Costa, o qual é uma carta escrita pelo Brigadeiro a Gomes Freire de Andrada em 24 de fevereiro de 1737, não diga ele o dia do desembarque, é fácil concluir ter sido no dia 19 de fevereiro, dia em que Silva Paes nos conta ter estado “aflito e impaciente”, dadas as dificuldades que teve e dentre essas a perda de uma Sumaca.
Três semanas depois, 12 de março de 1737, em uma espécie de carta-relatório de Silva Paes para o governador Gomes Freire de Andrada, dentre as inúmeras notícias nos informa que, “O primeiro dia em que aqui se celebrou Missa, foi no dia 2 deste mês [março de 1737], e é a primeira vez que aqui a teve. Foi um Pai Nosso e dez Aves Maria José, a quem tenho muita devoção. E foi quem fez a função de retábulo [Obra de arquitetura, em mármore ou madeira, por detrás do altar, ao qual serve de ornamento, e de ordinário contém um quadro, representando algum assunto religioso, ou alusivo à religião. Qualquer quadro painel, etc.]”.
Prossegue Silva Paes manifestando que “Gostaria que tivesse esta Praça e nova Colônia a dita vocação de Jesus Maria José. E a da outra parte, a de São Pedro, por ser o Rio Grande de S. Pedro. Se V. Exa. assim o aprovar, as intitularei com estes Patronos. Para qualquer destas povoações, é preciso vigário, pois um só não pode acudir a ambas, sendo a outra parte de grande extensão, pelas estâncias que aqui se acham estabelecidas Rio acima, sendo algumas distantes da Laguna mais de 130 léguas, a quem não pode acudir aquele vigário de V. Exa. Confira com o Bispo, para que se lhe dê a providência de que se necessita”.
No que diz respeito ao aumento da populução informa ele que, “Quanto aos colonos, devem vir Cazaes das Ilhas, que são os mais próprios para esta terra, conforme S. Majestade tinha mandado dizer. E quanto antes vierem, bem como os [colonos] que evacuam a Colônia do Sacramento, melhor”.
Pede também Silva Paes que, “Caso para cá venham patachos [Embarcação de dois mastros, com vergas redondas e mastaréu de joanete no mastro da proa], é preciso mandar um ferro para hóstias [deve tratar-se do conjunto de utensílios para a feitura e conservação de hóstias], alguns barris de farinha do Reino para as sobreditas e para os doentes, algum açúcar e barris de mel, dos quais, dois se quer para mesinhas, alguns grãos de lentilhas, não somente para os doentes, mas também para semear, e algumas caixetas de marmelada”.
Um outro ato, registrado no Livro de Registros da Expedição do Rio Grande, praticado por Silva Paes, e que nos deixou bastante intrigados, foi o de ter o Brigadeiro, em 12 de julho de 1737, mandado o Tesoureiro da Expedição assistir às duas Igrejas, “que de novo se levantaram”, quais sejam: “a deste porto de Jesus-Maria-José e a do Estreito de Sant’Anna, com os ornamentos e mais trastes necessários para a sua decência, bem como todo o guisamento [Alfaias (adornos) de Igreja. Vinho e hóstias, para a Missa.] e cera que lhes for necessária, cuja despesa lhe fará o Comissário da mesma Expedição” (grifo nosso).
Grifamos, “que de novo se levantaram”, porque nos pareceu curioso o fato de poucos meses depois da chegada de Silva Paes e sua expedição, ter este, ao se referir às Igrejas, feito da forma como o fez; pois, para que algo se levante de novo, é preciso que estivesse antes de pé.

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã.

VAMOS CONGONHAR?


A. F. Monquelat
V. Marcolla

A primeira expedição de Manoel Gonçalves de Aguiar ao Sul, se deu em 11 de fevereiro de 1711 por solicitação do Governador do Rio de Janeiro, Francisco de Castro Moraes, e ordem de Manoel Gomes Barbosa, Mestre-de-campo e Governador da Praça de Santos, ponto de partida de Manoel G. Aguiar.
Outra entrada, e que trouxe Aguiar até a Vila de Laguna, em 1716, é a que deu origem às “Notícias Práticas da Costa e Povoações do Mar do Sul”, na qual Gonçalves de Aguiar, respondendo às perguntas feitas pelo Governador Antônio de Brito e Menezes, nos informa sobre a erva congonha.
A pergunta, que é a 13ª, foi feita com o seguinte conteúdo: “Há notícia de que os Castelhanos, neste sertão ou nesta vizinhança, vão aí buscar a Erva chamada Congonha [...]?
Ao que responde Manoel Aguiar: “Pelas notícias que me deram os moradores da Laguna, quando lá estive em janeiro de 1716, os Castelhanos se abastecem das congonhas na cidade que denominam de Paraguay e outros lugares circunvizinhos, mas, principalmente nas aldeias dos P. P. da Companhia dos Castelhanos [Companhia de Jesus], que ficam todas pelo rio de Buenos Aires acima, bem como na mesma parte. E que aí faziam negócio para levarem à outra parte, que é, ao Peru. [...]”.
Posteriormente, quando preparávamos a 21ª parte da série que aqui, no DM, estamos publicando sob o título geral de O desbravamento do Sul e o povoamento de Pelotas – uma história documental e cronológica”, a certa altura nos deparamos novamente com o nome congonha, pois em uma das cartas que Silva Paes envia ao governador da Capitania do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, pede o Brigadeiro, dentre outros gêneros, que o governador lhe envie congonha.
Alega Paes que os 700 alqueires (antiga medida de grãos: seis alqueires faziam um saco) vindos anteriomente, haviam terminado “e os soldados não a tem”.
Tal pedido nos deixou curiosos; pois, no primeiro momento não sabíamos do que se tratava. A curiosidade, razão de ser deste Artigo, nos levou a buscar o significado da palavra congonha.
Tendo à mão, o velho e indispensável “Diccionario da Lingua Portuguesa”, de Antonio de Moraes Silva, nosso primeiro e sempre fonte de pesquisa dos dicionaristas que o sucederam, e lá estava: “Congònha, s. f. (termo do Brazil) O mesmo que Mate, ou Herva mate § No Estado de Minas dá-se este nome à Ilex congonha (Lambert), e de Congonha do campo ou Mate à Luxemburgia polyandra (Saint-Hilaire), cuja infusão é um sucedâneo do verdadeiro mate. § A bebida que se faz com a folha d’esta planta; mate”.
É também Moraes quem nos diz que: “Congonhar, verbo intransitivo (termo vulgar do Rio Grande do Sul) Tomar mate”. E o que nos diz Moraes sobre “Matear: verbo intransitivo (t. do Rio Grande do Sul) O mesmo que Congonhar”.
Consultando ainda Carlos Teschauer, S. J., nos informa este em sua “III Série das Apostilas ao Dicionário de Vocábulos Brasileiros”, que: “Congonha s. f. (bot. Ilex paraguariensis Saint-Hilaire) nome guarani e vulgar usado da erva-mate (tupi-guarani, corruptela congõi, talvez corruptela de mo-cong, o que sustenta)”.
Em tupi-guarani, congõi é o que faz ser, que alimenta.
Sobre a Congonheira, diz Teschauer que é um termo: “s. f. (botânica nome da árvore da erva-mate ou congonha. ‘Dizem alguns que as folhas da congonheira ou erva-mate eram a princípio mascadas pelos selvagens, principalmente quando iam a pesca, ou a caça, ou aos trabalhos pelas localidades pantanosas e alagadiças, que tanto abundam nas regiões ribeirinhas do Paraguai e seus afluentes e que graças a este meio eram poupados das febres palustres, e suportavam facilmente a fome e as fadigas’. (Caminhoá, III. pag. 2627)”.
João S. Decker, em sua obra “Aspectos Biológicos da Flora Brasileira”, nos informa que “A palavra ‘mate’ é, porém, a denominação do recipiente, o arcobouço de uma Cucurbitaca do gênero Lagenaria, em que se prepara a bebida; que assim recebeu este mesmo nome por mera extensão da palavra. A denominação de ‘herva mate’ vem da palavra espanhola ‘Yerba’ e é a tradução da palavra ‘caá’ com que os índios do Paraguai designam as folhas da Ilex, enquanto os índios do Brasil as chamam de ‘congonha’. A cultura da ‘herva mate’ e a história colonial do Brasil, estão intimamente ligadas’.
A pergunta que nos fizemos, ao ler a carta, foi “o que Silva Paes pedira ao governador para dar aos seus soldados?”
Informados por Moraes e Teschauer descobrimos que os soldados de Silva Paes, por estarem em falta, queriam erva mate.
Não é despropositado fazermos outra indagação: se os soldados não eram sul-rio-grandenses, afinal, de quem herdamos o hábito de matear?
Bem, enquanto nos indagamos, ainda que a resposta nos pareça clara, vejamos através da correspondência de Gomes Freire de Andrade com Diogo de Mendonça Corte Real, outros benefícios atribuídos à congonha.
Na primeira carta, datada de 6 de novembro de 1755, desde a Vila do Rio Grande, diz o Governador a certa altura: “Não sabendo qual é a queixa mais dominante de V. Exa., me ocorre que possa ser areias [cálculos] ou gota e, ainda para os defluxos, é preservativo e particular remédio, a congonha; pois eu padecia de dores causadas pelas inúmeras areias que hei lançado.
Há 2 anos que uso desta excelente erva [Gomes Freire se encontrava no Rio Grande, desde março de 1752]. Nos primeiros 15 dias que tomei o mate (aqui assim chamam a porção, que se toma pela manhã, na cuia), tive bastante incômodo. Entendi que foi pelo remédio [mate] as abalar e despegar. Continuei a lançá-las monstruosamente, diminuíram-se logo as dores dos rins e perdi as que me embaraçavam o movimento das pernas, ficando como se de tal queixa não houvesse padecido.
O mesmo efeito observei em muitas pessoas que, nestas Tropas, padeciam da mesma queixa.
Também a da gota, dela não há memória em pessoa que usa tomar desta bebida, a qual, neste País, tanto da parte dos Castelhanos, como da nossa, é hoje comum e geral. Sendo desterrados [eliminados] estes 2 achaques, louvam a virtude contra muitos outros [...]”.
Em uma outra carta, de 13 de dezembro de 1755, ainda no Rio Grande, Gomes Freire novamente se refere aos maravilhosos efeitos da erva congonha na cura das doenças de rins (cálculos) e gota; ocasião em que envia ao amigo Diogo de Mendonça, uma “Receita para a preparação do remédio da congonha”, documento que não conseguimos localizar.


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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã.

O DEMÔNIO NA TERRA DE SEPÉ


A. F. Monquelat
V. Marcolla

“E então se fará tudo, porque deste modo
 
se farão as coisas como Deus manda;
 
senão, irão para onde o diabo quiser”.

Eram cinco horas e meia da manhã do dia sete de fevereiro do ano de mil setecentos e cinquenta e seis do nascimento de Jesus Cristo, quando as tropas portuguesas e espanholas levantaram acampamento. E divididas, pela direita, marcharam pelo mesmo lado em direção ao campo Guacacay, aonde chegaram por volta do meio dia.
Dali, andaram três léguas. Duas pelo caminho noroeste, e nesta distância encontraram quatro ranchos de palha. Um destes ranchos é que servia de local para algum padre da Companhia dizer missa aos índios, os quais haviam se retirado pouco antes da chegada das forças do Conde de Bobadela e as do General Don José de Andonaegui.
Tal rancho, que fazia às vezes de Capela, tinha as paredes revestidas de couros postos sobre paus-a-pique e coberto de palha caiada por dentro, com uma leve mão de cal. E a porta de entrada virada para o oeste.
Uma légua depois, ao norte, soldados, oficiais, peões e outras gentes mais acamparam próximo a um rio, em cuja margem encontraram um grande rancho de palha, que tanto servia de habitação quanto de local para os índios prestarem socorro uns aos outros.
Tampouco ali encontraram o que combater ou destruir, exceto e tão somente quatro indefesos pintinhos que o rebelde gentio estava criando e que na fuga, deixou para trás.
Em frente seguiram as tropas da Coroa Portuguesa e as de Sua Majestade Católica. Logo que chegaram ao campo, avistaram, na outra parte do rio, muitos animais espalhados acima e abaixo na encosta da margem, bem assim como nas lombadas.
Novamente acamparam em posição de batalha, dispondo suas divisões em quarto sobre o lado direito. À esquerda ficou o exército português, e o dos castelhanos à direita. E tudo o mais executaram do mesmo modo. Não sem antes, como era o costume, adiantarem suas guardas, que em de pronto passaram à outra margem, subindo em direção as cumeeiras de onde avistaram alguns índios, que se encontravam em partes ainda mais altas e que logo se foram retirando.
Em seguida, vários peões portugueses, sem pedirem licença, atravessaram o rio. Distanciaram-se das sentinelas militares com o objetivo único de carnearem o gado, que de propósito os índios tinham deixado por aquelas paragens, no intuito de os enganar e dessa forma os poderem apanhar.
E assim, de repente, foi o que aconteceu. Porque próximo ao gado e fora da vista dos peões e das guardas, havia alguns índios escondidos, que partiram em direção aos distraídos peões lanceando-os e os matando quando ainda estavam carneando o gado.
Mortos os peões, os índios fugiram sem dar chance às guardas, que ao perceberem o que havia acontecido, era tarde demais.
Por volta das cinco horas da tarde daquele mesmo dia, as guardas avistaram muitos outros índios, do que em seguida deram parte.
O General castelhano, tão logo soube, mandou várias partidas de seus dragões para reforçar as guardas, pedindo aos portugueses que fizessem o mesmo. O que prontamente foi feito.
E assim sendo, colocaram do outro lado do rio e por cima de todas as cumeeiras, mais de oitocentos dragões. Do lado português, o comando dos dragões coube ao recém promovido Coronel Tomás Luís Osório. Já os dragões castelhanos eram liderados por D. José Joaquim Viana, general e governador de Montevideo.
Sendo então seis horas e meia da mesma tarde, um grande número de índios, a meia légua de distância, saiu de uma ponta do mato marchando em direção às tropas que se encontravam no alto das cumeeiras.
É provável que um, dentre aquele corpo de índios, olhasse indignado a união de soldados de Sua Majestade Católica com os homens de Gomes Freire de Andrada; pois o seu povo e os outros povos seus sabiam o que queriam e o que não queriam. E “não queremos a vinda de Gomes Freire, porque ele e os seus são os que por obra do demônio nos têm causado tanto aborrecimento.
Este Gomes Freire é o autor de tantos distúrbios e é também o que obra malmente, enganando ao seu rei; por cujo motivo não o queremos receber.
Deus Nosso Senhor foi o que nos deu estas terras, e [Gomes Freire] anda maquinando [e nos atribuindo muitas falsidades] bem como também aos benditos padres, de quem diz, que nos deixam morrer sem os santos sacramentos.
E por estas causas, julgamos que a vinda dos ditos não é para o serviço de Deus. Nós outros, em nada temos faltado ao serviço do nosso bom rei, sempre que este nos têm ocupado. E com toda a boa vontade temos cumprido os seus mandados, e é prova disto as repetidas vezes que em cumprimento das suas ordens, temos exposto as nossas vidas e derramado nosso sangue nos sítios que aos portugueses da Colônia [do Sacramento] temos feito. E isto, só para cumprir a Sua Vontade, sem manifestarmos outra coisa senão o grande gosto de ver cumpridas as Suas ordens, de que é boa testemunha o Sr. General D. Bruno e o outro governador que o sucedeu.
E quando nosso bom rei nos necessitou no Paraguay, lá fomos e fomos muitos [...] e porque temos cumprido as suas ordens, agora, depois de tudo isto, nos dizeis que deixemos as nossas terras, nossos ervais, nossas estâncias, enfim, o terreno inteiro. Este mandado não é de Deus, senão do demônio. Pois nosso rei sempre anda pelo caminho de Deus, e não do demônio. Isto é o que sempre ouvimos. Nosso rei, ainda que miseráveis e desleixados sejam os seus vassalos, sempre lhes teve amor. Nunca, o nosso bom rei nos quis tiranizar ou nos prejudicar. Sabendo nós estas coisas, não havemos de crer que o nosso bom rei mande que uns infelizes sejam prejudicados nas suas fazendas e desterrá-los, sem outro motivo do que o sempre terem servido. E assim, não creremos jamais, quando diga: Vós outros, Índios, dai vossas terras e o quanto tendes aos Portugueses. Isto, não o creremos jamais. Não há de ser assim, a não ser que as queiram comprar com seu sangue. Nós outros, todos os índios, as defenderemos com nosso sangue. Vinte povos somos para sair-lhes ao encontro. E, com grandíssima alegria nos entregaremos à luta, antes de entregarmos as nossas terras.
Por que este superior maior, não dá aos Portugueses Buenos Aires, Santa Fé, Corrientes e o Paraguay, e tenha que recair este mandato sobre os pobres Índios, a quem manda que deixem as suas casas, suas igrejas, enfim o quanto tenham e Deus lhes tenha dado?
Nos dias passados, queríamos que vós outros viessem da parte de nosso bom rei. E assim nos prevenimos para o que havíamos de fazer. Não queremos ir aonde estais vós outros, porque não temos confiança em vós. E isto nasceu por haverdes desprezado as nossas razões. Nós outros, não queremos dar estas terras, ainda que tenhais dito que as queremos dar”.
Em seguida se uniram aos dragões outras partidas de soldados castelhanos e portugueses, pondo-se todos em marcha ao encontro dos índios liderados pelo indignado Sepé.
Eram oito horas da noite e noite de excelente lua quando os dois exércitos, sob o comando do governador de Montevideo, avançaram e com tanta força, “que logo à segunda descarga, fugiu toda aquela grande quantidade de Índios, ficando-lhes mortos sete e o seu grande capitão Sepé, o maior general que eles tinham, o qual o matou o dito governador”.
Na algibeira “do general dos índios, o mais famoso capitão que entre eles havia”, foram encontradas duas cartas que lhe tinham mandado os padres das Missões; e nestas, motivos suficientes para muita indignação.

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Nota: Este artigo teve por base a leitura do Diário da Expedição e das cartas encontradas na algibeira de Sepé.