sábado, 29 de outubro de 2011

O POVOAMENTO DE PELOTAS (31)*


AS DATAS E SESMARIAS NA SERRA DOS TAPES E SÃO LOURENÇO DO SUL

A. F. Monquelat
V. Marcolla


O espaço territorial compreendido na Serra dos Tapes, cuja jurisdição primeira esteve a cargo do Comandante do Distrito do Serro Pelado foi concedido inicialmente aos Casais oriundo dos Açores.
Essa concessão, denominada de “Datas de Terras aos Cazaes”, também chamados de “Casal do Número”, é bem provável que tenha acontecido após a retomada da Vila do Rio Grande (1776), de qualquer forma, o capitão Antônio José Feijó, atendendo ordem (de 18.05.1789) do Coronel Comandante do Continente de São Pedro, Joaquim José Ribeiro da Costa (que substituiu interinamente o governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara durante a expedição de Demarcação de Limites, entre os anos de 1786 a 1790), foi com o Piloto Francisco Pereira Xavier ao distrito do Serro Pelado, e ali “no terreno em que esteve situado [de posse] Salvador Bueno da Fonseca, fez medir, demarcar e deu posse a Francisco José Soares de uma Data de Terras que compreende setecentas e cincoenta braças de terra de frente e outras tantas de fundo, com a sua frente Nor-noroeste Sul-sueste se dividindo Les-nordeste extrema pelo Nor-noroeste com Ignacia Maria e dois arroios que dividem o mesmo Campo. E se obrigou o dito Francisco José Soares a herdar [em virtude da Lei] e trabalhar na dita Data de terras e não a vender antes de serem passados cinco anos. E para constar, lhe passei a presente por mim assinada. Vila de São Pedro do Rio Grande, em trinta de junho de mil setecentos e oitenta e nove. Capitão Antônio José Feijó”.
Bem, diante do documento transcrito podemos dizer que o fato de estar declarado que antes da posse dada a Francisco José Soares ali naquela data de terras “esteve situado Salvador Bueno da Fonseca”, é por demais evidente que as datas de terras concedidas nas Serras dos Tapes antecede em pelo menos uma década ao que a historiografia aponta, ou seja, ao ano de 1799 ou 1800. Vê-se também, que a concessão tinha como parâmetro 750 braças e o concessionário não as podia vender sem que decorresse pelo menos cinco anos depois de emitido na posse. O que na prática não ocorreu, como veremos posteriormente.
A carta de data firmada pelo capitão Antônio José Feijó, na qual constava que este dava em nome de Sua Majestade “em consequência das ordens que tenho do Ilustríssimo Excelentíssimo Vice-rei do Estado setecentos e cincoenta braças de frente e outra igual quantidade de fundos no lugar que declara esta Certidão de Número Dezessete, passada pelo Capitão Antônio José Feijó, com as condições declaradas na mesma, e este Despacho lhe servirá como Data e se registre no livro de Mais [datas], na forma das Reais Ordens”, depois de registrada na Vila do Rio Grande em 06 de julho de 1789, pelo Escrivão Ribeiro, foi levada também a registro por ordem do Provedor da Fazenda Real Ignacio Osório com o seguinte teor: “Registrado no Livro Terceiro de Datas de Terras aos Casaes a folhas cento e doze verso. Porto Alegre, vinte nove de agosto de mil setecentos e oitenta e nove. Amorin”.
Poucos anos depois e antes do prazo de cinco anos, foi apontado no registro de folha 112 verso: “Pertence esta Carta de Data desde hoje para todo o sempre, a José Gonçalves da Silveira Calheca, por venda que dela lhe fizemos muito por nossa livre vontade. E por não sabermos ler e escrever, pedimos e rogamos a Manoel Luiz Freire, que este por nós fizesse e assinasse. E nós assinamos com o nosso sinal de costume, que é uma cruz [estava uma cruz entre o sinal e o nome de Francisco José Soares, e outra cruz entre o sinal e o nome de Maria Ignacia] e como testemunho de que este pertence fiz e assinei: Manoel Luiz Freire”.
Outra data de terras adquirida por José Gonçalves da Silveira Calheca, que também por ordem do coronel comandante do Continente, Joaquim José Ribeiro da Costa, o capitão Antônio José Feijó acompanhado do piloto Francisco Pereira Xavier passou ao “Distrito do Serro Pelado do terreno em que esteve situado Salvador Bueno da Fonseca, e ali fiz medir, demarcar e dei posse a Manoel de Farias Albarnas de uma Data de Terras, que compreendem setecentos e cincoenta braças de frente e outras tantas de fundo, corre sua frente Nor-noroeste Sul-sueste e divide-se Les-nordeste Es-sudoeste e estrema pelo Nor-noroeste com as do defunto Sampaio, pelo Sul-sueste com Francisco José Soares, e com dois Arroios que se dividem no campo. E se obrigou o dito Manoel de Farias Albarnas a residir e trabalhar na dita Data de terras e não a vender antes de serem passados cinco anos, e para contar lhe passei a presente por mim assinada. Vila de São Pedro do Rio Grande em trinta de junho de mil setecentos e oitenta e nove”.
A seguir, havia um despacho de teor e seguinte forma: “concedo ao Casal de Número, Manoel de Farias Albarnas, em nome de Sua Majestade, em consequência das ordens do Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Vice-rei do Estado, setecentas e cincoenta braças de frente e outra igual quantidade de fundo, no lugar que declara a Certidão Número dezoito, passada pelo Capitão Antônio José Feijó, com as condições declaradas na mesma Certidão. E este Despacho lhe servirá como Carta de Data, que se registrou no Livro de Mais, na forma das Reais Ordens. Vila de São Pedro do Rio Grande, seis de julho de mil setecentos e oitenta e nove. Ribeiro”.
Havia ainda o Despacho do Provedor da Fazenda Real, Ignacio Osório Vieira, determinando que fosse registrada no “Livro Terceiro de Datas aos Cazaes”, o que foi feito a folhas cento e quarenta e um verso, em Porto Alegre, aos quatro dias do mês de janeiro de mil setecentos e noventa, com a assinatura de Amorin.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos foram atualizados e paleografados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 30 de outubro de 2011.

sábado, 22 de outubro de 2011

O POVOAMENTO DE PELOTAS (30)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

AS DATAS E SESMARIAS NA SERRA DOS TAPES E SÃO LOURENÇO DO SUL

Os Gusmão e as Charqueadas em São Lourenço do Sul

O capitão João Cardoso de Gusmão, em seu nome e em nome de “outros estancieiros moradores na costa do Camaquã, distrito da Vila do Rio Grande”, encaminharam ao Governador, nos primeiros meses do ano de 1813, um documento, no qual disse o Capitão que não tendo “o dito Rio, outro porto próprio para o embarque e transporte de seus efeitos [produtos], senão o denominado da Estiva, que fica nos fundos da estância do coronel reformado Simão S. da Silva, para o qual, suposto havia estrada aberta e, da qual, se serve o alferes José Cardoso de Gusmão e o tenente João Francisco Vieira Braga; contudo, o Suplicado impede aos demais moradores [o acesso] a Servidão”, e que tal atitude fazia com que os Suplicantes tivessem de fazer uma grande e penosa volta, dada a distância que tinham de percorrer até o rio São Lourenço; “isto, em detrimento público, do comércio e da agricultura. E como, para melhor resultado e incentivo destes interessantes bens ao Estado, se devem abrir e facilitar todos os meios, sendo para tal, e da maior importância o pronto transporte para mais fácil e breve exportação; principalmente, atendendo os gêneros do país, sujeitos à corrupção e danificação além do que, as providentes leis da Monarquia atenderam e preveniram nas concessões das terras que, quando se achasse rio navegável no descobrimento das ditas terras, ficassem suas margens com a extensão própria para servidão pública; e tal disposição, ficaria certamente sem efeito, se os proprietários pudessem, a seu arbítrio, vedar o trânsito e a competente estrada”.
Portanto, e nestes termos, recorriam ao Governador para que, atendendo o exposto e o grande benefício que resultaria aos Suplicantes e ao Estado, pela agilidade na pronta exportação de seus produtos, ainda, “podendo empregar-se em fabricar carnes secas, salgadas, resultando, daí, maior rédito [rendimento, lucro...] para a Fazenda Real e utilidade ao Comércio, existindo naquele lugar, alguns com força [condições] para este e outros tráficos, pelo maior número de viandantes e para esta mesma concorrência e comunicação mais cultivadas as terras, e isentas de facinorosos [criminosos], que procuram refugiar-se naqueles interiores e costa deserta, se digne mandar que fique livre o porto da Estiva, do sobredito rio Camaquã, e franco aos moradores e ao público; abstendo-se o Suplicado de impedir o trânsito ao mesmo, pela estrada que se acha aberta, pelo qual se servem os já mencionados tenente Braga, e o alferes José Cardoso de Gusmão”.
Finalizavam o documento pedindo ao Governador que fosse servido atender aos Suplicantes, com a retidão “que costuma”.
O despacho do Governador ao requerimento do capitão João Cardoso de Gusmão e demais estancieiros, dado em Porto Alegre aos dois dias do mês de junho de 1813, foi o de: “Informe o Coronel do Distrito, ouvindo o Suplicado”.
Melchior Cardoso Osório [filho de Tomás Luiz Osório], desde a Capela de Nossa Senhora da Conceição, aos 15 dias do mês de setembro de 1813, informou ao Governador que o coronel Simão Soares da Silva, quando ouvido, disse que “não embaraçou em tempo algum a exportação para o porto da Estiva, o que é constante, e que não tem na sua Estância lugar deserto por nela haver quatro charqueadas [grifo nosso] e um porto, estabelecido no contemplado caminho. E que só procura impedir um Passo, que tem no Arroio que divide o fundo do seu campo e que, embora aberto há trinta anos, nunca foi Real; e quer, por aquele lugar, invernar uma porção de gado do contratador Antônio Soares de Paiva; e, pelo mesmo Passo, há mais de três anos transportam os efeitos [produtos] de uma charqueada [grifo nosso] que há na sua Fazenda, e contígua a ele, e os interessados, tenente João Francisco Vieira Braga e o alferes José Cardoso de Gusmão, por lhes ser mais cômodo; evitando, assim, o aumento de mais de sete léguas para chegarem ao dito porto da Estiva, ao não usarem o caminho Real”.
Melchior Cardoso Osório encerrava o informe dizendo que o dito, “é tudo o quanto sei informar”.
Ao tomar conhecimento do informado, João Cardoso de Gusmão, por ele e outros estancieiros da costa do Camaquã, “têm a honra de apresentarem o seu Requerimento junto, informado na conformidade do judicioso despacho de V. Exª., [baseado] no Comandante do Distrito, cuja informação, não obstante carecer de precisa clareza sobre todos os pontos que abrange o Requerimento dos Suplicantes, contudo, bem dá a conhecer que o Passo, que o Suplicado sesmeiro impede, se acha a 30as. [ares (?), seria então o equivalente a 3.000 metros]; e que, na estrada para ele, fica o porto da Estiva, o mais próprio e conveniente naqueles contornos; e se encurta 7 léguas, o que é bastante, para se considerar o cômodo e a utilidade que resulta a todos os moradores no uso daquele, impedido a arbítrio do Suplicado que, em prejuízo do comércio e por consequência dos Reais direitos, quer monopolizar o referido porto da Estiva, onde não consente a edificação de armazéns, para cada um recolher os seus produtos, que lhes é preciso embarcar; ao ponto de constranger o fazendeiro José Cardoso de Gusmão, a ter de lhe pagar arrendamento do próprio armazém que tem naquele Porto; quando, dito porto da Estiva, com logradouro suficiente, deve ser realengo e de utilidade pública, conforme as razões já ponderadas.
E porque é sabido haver sobras [de terra] naquela Fazenda [de Simão Soares da Silva], requerem os Suplicantes, a bem da franquia do trânsito por aquele mais breve espaço e Passo, que o Suplicado agora, com estudado pretexto, alega lhe convir fechado para invernar gado do contratador, a fim de sustar a deliberação da justa representação dos Suplicantes [que pedem], se digne V. Exª. conceder-lhes licença para que estes, às suas custas, mandem medir e demarcar a Sesmaria do Suplicado, para conhecer-se as suas sobras, e que essas, em bem comum e utilidade do Estado, sejam reservadas, contra [em direção] ao dito Porto, ficando as mesmas realengas, para que nelas se possam levantar [erguer] charqueadas, e estabelecer-se armazéns para depósito dos gêneros e produtos, que os lavradores e estancieiros daquelas circunvizinhanças, têm de colocarem em Porto de embarque.
Por tanto, pedem a V. Exª. se digne deferir o Requerimento junto, com a retidão que costuma; e conceder licença ao que imploram, para o benefício público sobre o que ponderam os Suplicantes. E. R. Mercê”.
Os dois requerimentos de João Cardoso de Gusmão e de outros estancieiros da costa do Camaquã receberam aos 31 dias do mês de março de 1814, o seguinte despacho: “Na forma requerida. [Rubrica]”.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos foram atualizados e paleografados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 23 de outubro de 2011.

O POVOAMENTO DE PELOTAS (29)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

AS DATAS E SESMARIAS NA SERRA DOS TAPES E SÃO LOURENÇO DO SUL


A Sesmaria de João Pedroso Bueno



Através dos Autos de Medição das terras do alferes José Cardoso de Gusmão, tomamos conhecimento de um outro sesmeiro de terras em São Lourenço do Sul, até então desconhecido na historiografia daquele município.
Foi dito também, no corpo dos Autos, que as terras de João Pedroso Bueno já estavam medidas e demarcadas; vejamos, agora, o que nos diz o sesmeiro: “Diz João Pedroso Bueno, que ele, Suplicante, possui uma sorte de terras na Serra dos Tapes, sendo esta de matos e faxinais, no rumo do Rio Camaquam, que compreendem um quarto de légua em sua testada e três quartos de fundos, e que tal Sesmaria já se acha medida e demarcada como pode se ver pela Certidão anexa. E, porque as quer possuir com legítimo Título, recorre e pede a V. A. R., se digne mandar passar-lhe sua Régia Carta de Sesmaria, visto estar o Suplicante na posse e fruição das terras já medidas e demarcadas, sem oposição de ereo algum. E. R. Mercê”.
A petição de João Pedroso Bueno, encaminhada à Corte, teve por despacho o seguinte: “Requeira ao Governador e Capitão General da Capitania de São Pedro. Rio, 8 de janeiro de 1810”.
E isto é tudo o que pudemos apurar sobre o sesmeiro João Pedroso Bueno.

A Sesmaria de Pascoal Thadeo Pacheco de Miranda

Quando da medição e demarcação das terras do alferes José Cardoso de Gusmão, no ato de juramento do Piloto e do Ajudante da corda nomeados para aquela função, foi dito que: “e sendo aí, em casa do éreo Pascoal Thadeo Pacheco de Miranda”; logo a seguir, pusemos um ponto de interrogação. Bem, pusemos tal ponto porque sempre os éreos eram confinantes; muito embora, a palavra éreo signifique “Senhorio, ou dono de terras”. Mas, e desta vez, o éreo em questão não era lindeiro, confrontante ou confinante; e sim, vizinho.
De qualquer forma, tal acontecimento serviu para sabermos que o éreo Pascoal Thadeo Pacheco de Miranda também era sesmeiro em terras da hoje cidade de São Lourenço do Sul, razão pela qual estamos trazendo alguns dados sobre o vizinho do alferes José Cardoso de Gusmão.
No requerimento enviado ao Governador, disse Pascoal Thadeo Pacheco de Miranda ser morador do outro lado do rio Camaquã, distrito do Rio Grande, e que ele, Suplicante, se achava de posse, sem oposição de pessoa alguma, de umas terras na Serra dos Tapes, onde tinha seu “estabelecimento e cultivas”, cujo terreno compreendia meia légua de testada e uma de fundo; confrontando-se com o Arroio chamado do Evaristo, e terras que foram do falecido Dr. Firmiano José da Silva Falcão.
Disse, ainda, que as terras estavam medidas e demarcadas na “conformidade das Ordens do Exmo. Vice-rei, então, do Estado”, como constava da Carta daquele Excelentíssimo à Câmara “desta Vila, inserta na Sentença anexa”; e, porque hoje pertence a V. Exa. a concepção da suplicada graça, e o Suplicante queria possuir aquele terreno com legítimo Título, pedia que Sua Excelência fosse servido conceder-lhe, por Carta de Sesmaria, na conformidade das Reais Ordens, aquele terreno com as confrontações indicadas “na Sentença anexa”.
O pedido de Pascoal Tadeo teve, por parte do Governador, o seguinte despacho: “Informe o Doutor Ouvidor da Comarca, ouvindo primeiro a Câmara da Vila do Distrito a que pertence o terreno pedido, a qual fará as diligências do Estilo, mandando afixar Editais por espaço de trinta dias na mesma Vila e nos povoados mais próximos do dito terreno para constar aos co-éreos e mais partes interessadas; depois do que, não resultando oposição nas referidas diligências, nem se oferecendo a Câmara dúvida alguma, se meteria o Suplicante a justificar se tem possibilidades para fazer a cultiva que se propõe; se é domiciliado nesta Capitania; se ainda não possui alguma outra Data de Sesmaria em seu nome ou de interposta pessoa, por qualquer título, posse ou intrusão; e, finalmente, me enviará estes autos preparatórios, acompanhados do seu parecer, assim que, estando prontos, possa mandar responder o Procurador da Fazenda Real; ou, no contrário acontecimento, remeter ao juízo do contencioso a discussão dos embaraços que ocorrerem nesta diligência, para informação. Palácio de Porto Alegre, 24 de maio de 1814. [Rubrica]”.

O Ouvidor

Informe a Câmara do Distrito; e, proceda-se nas diligências ordenadas. Porto Alegre, 28 de julho de 1814. [Rubrica]”.

A Câmara de Rio Grande

Cumpra-se. Em Câmara de 10 de setembro de 1814. [várias assinaturas]”.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos foram atualizados e paleografados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 16 de outubro de 2011.

sábado, 15 de outubro de 2011

PINTO MARTINS OU JOÃO CARDOSO?*




A. F. Monquelat
V. Marcolla

O estabelecimento da indústria saladeiril, até então, vem sendo atribuído pela historiografia local e regional ao português José Pinto Martins, que teria, no ano de 1780, instalado às margens do arroio Pelotas uma charqueada.
Tal informação nos foi deixada, por primeira vez, em 1912, quando Simões Lopes Neto divulgou sua Revista do 1º Centenário de Pelotas; e daí em diante não cessou de se propagar, surpreendentemente, despida de qualquer prova documental e, assim mesmo, até hoje sobrevive.
Ainda que irrelevante para alguns, mas não menos pertinente a outros, entendemos necessário que se faça aqui uma breve distinção entre o ato de charquear e o estabelecimento das charqueadas.
É por demais evidente que muitos homens na ocupação e formação do território do Continente de São Pedro praticaram, por necessidade, o ato de charquear; entretanto, isto não os tornou ou torna charqueadores.
Não fosse assim, a indústria saladeiril no Rio Grande do Sul teria florescido nos primórdios do seu desbravamento; e isto nos levaria à primeira década do século XVIII. Daí fazermos a distinção entre o charquear e o estabelecer charqueada.
O primeiro, já o dissemos, foi praticado por necessidade, de forma casual e nômade. O outro, com o propósito fixo e de lucro comercial.
Embora não haja prova documental alguma sobre a presença do charqueador José Pinto Martins nos anos em que dizem ter ele instalado sua charqueada, 1779-1780, vamos admitir que tal tenha ocorrido. Aí, podemos trabalhar com duas hipóteses: a primeira, é a de que houvesse se arranchado, por favor ou arrendamento, nas terras do capitão Inácio Antônio da Silveira (Fazenda do Monte Bonito), e ali instalado sua charqueada; a outra, menos provável, é a de que tenha se instalado no local destinado para Logradouro Público.
Que José Pinto Martins esteve entre nós, não há dúvida alguma. A pergunta é: desde quando e onde?
O primeiro sinal da presença de Pinto Martins no Continente de São Pedro, nos parece ter sido o por nós apontado, quando da publicação do artigo “Apontamentos para uma história do charque no Continente de São Pedro”, de nº 12, onde o encontramos em 1º de outubro de 1796, assinando, junto a outros moradores do Continente, uma Representação a Sua Majestade clamando por sal, para que pudessem praticar as suas charqueações.
Durante anos de estafante pesquisa, não conseguimos encontrar nas mais diversas fontes e arquivos consultados, o menor indício da presença de José Pinto Martins entre nós no espaço temporal dos anos de 1780 a 1795; o que, por outro lado, não significa que aqui não tenha estado; e sim, que até hoje não existe a menor prova documental de sua presença ou do estabelecimento de charqueada em 1780, no Continente.
No entanto, e para nossa surpresa, foi o próprio João Simões Lopes Neto quem nos deu a pista para que chegássemos ao pioneiro, segundo palavras do mesmo, da indústria saladeiril do Continente de São Pedro.
Vancê nunca ouviu falar do João Cardoso?... Não?... É pena.
O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da Maria Gomes; bom velho, muito estimado, mas chalrador como trinta e que dava um dente por dois dedos de prosa, e mui amigo de novidades.”
Vancê agora lembrou? Pois bem, é sobre este João Cardoso, que Simões Lopes Neto eternizou através de um de seus contos, O Mate do João Cardoso, que pedimos licença para falar.
O nome por inteiro deste “bom velho”, era João Cardoso da Silva. Foi um sujeito importante, dono de muitos escravos e senhor de muitas terras, que viveu lá para os lados da Forqueta Grande do Piratini.
Dizem que ainda hoje há vestígios, naquelas bandas, do “Rancherio do João Cardoso”. Houve também por lá, em algum lugar de suas terras, o “Paço Geral do João Cardoso”; mas desse, não sobrou rastro. “Também... naquele tempo não havia jornais, e o que se ouvia e se contava ia de boca em boca, de ouvido para ouvido”; menos mal, podia não ter sobrado história alguma sobre o mate que não vinha: “Oh crioulo, olha o mate!”.
Enquanto o mate não vem, vamos aproveitar para falarmos um pouco sobre o João Cardoso na história do Continente.
A primeira vez que topamos com o nome de João Cardoso foi quando de nosso trabalho sobre o Povoamento de Pelotas, onde, ao escrevermos sobre a história da Sesmaria do Forte de São Gonçalo, dissemos a certa altura: “Por informação do Sargento-mor Francisco Pires Cazado, consta-nos estar o Suplicante estabelecido por compra que fez dos ditos campos, ou por lhe tocar como ajuste de uma Sociedade que teve com João Cardoso”.
A informação prestada pelo sargento-mor Francisco Pires Cazado (marido de Mariana Eufrásia da Silveira), atendia ao pedido da Câmara de Porto Alegre, cujo propósito era o de satisfazer a ordem do Vice-rei que, por sua vez, pretendia atender ao pedido de Sesmaria requerido pelo charqueador Teodósio Pereira Jacome, o qual informara ao Vice-rei, quando da solicitação, “que a ele, suplicante, concederam uns campos de que se acha de posse, e neles fazendo suas charqueadas”.
Embora nossas atenções estivessem voltadas para o sesmeiro charqueador, Teodósio Jacome, não pudemos, em vista do nome de João Cardoso, deixar de fazer um comentário: “Bem que este João Cardoso poderia ser o João Cardoso do Simões Lopes Neto”.
Oh! Crioulo!... olha esse mate, diabo!”
Logo a seguir, e ainda no mesmo trabalho, transcrevemos um texto que a certa altura diz que: “outro despacho semelhante aos estabelecidos, e do mesmo Marechal Governador, mas também dos dois campos circunvizinhos, pertencentes ao Suplicante, apegando-se a uma posse que teve, por licença do mesmo Marechal Governador, para xarquiar duas mil reses com seu Sócio João Cardoso da Silva”; se, por um lado acrescentamos ao nome de João Cardoso, o da Silva, por outro, perdemos o rastro do João Cardoso.
Daí, resolvemos reler o conto de Simões Lopes Neto, e lá estava uma pista: “O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da Maria Gomes”; ora, no Rio Grande do Sul se dava o nome de Passo ao lugar onde se atravessa um rio; passagem, e o nosso João Cardoso da Silva andou charqueando com seu sócio, Teodósio Pereira Jacome, no campos da região do forte de São Gonçalo, “que partem pelo Norte com o rio Piratini”; e como ainda hoje é sabido que o Passo da Maria Gomes é lá para as bandas do Piratini, descobríssemos nós quem era a Maria Gomes, e estaríamos novamente nas pegadas do João Cardoso.
Bem, mas quem era Maria Gomes? A mulher do Gomes? A filha do Gomes? A viúva do Gomes? Uma dateira? Uma sesmeira?
Pergunta daqui... indaga dali... chegamos a uma história de que a tal Maria Gomes, mulher do Manoel Gomes, indo banhar-se no tal Passo, morreu afogada.

A partir desta história, saímos atrás do Manoel Gomes; e descobrimos que lá por aqueles meios, havia ele comprado uns campos do capitão José de Azevedo Marques, o qual, tais campos, tinha apenas a concessão e posse. Esses campos, concedidos pelo Governador do Continente, José Marcelino de Figueiredo, eram sitos juntos ao Serro Pelado, dividindo-se pelo Norte com os campos do capitão Simão Soares da Silva; pelo Sul, com os do tenente-coronel Manoel Marques de Souza; pelo Leste, com os de Luiz Marques; e pelo Oeste, com o rio Piratini; os quais, “teriam pouco mais de uma légua de frente e duas de fundo”.
É melhor darmos uma encurtada nesta história, para evitar que o leitor diga que isto está ficando que nem o mate do João Cardoso, até porque, o texto completo, João Cardoso: dos Contos Gauchescos para a História, estará divulgado quando do lançamento do Almanaque do Bicentenário de Pelotas; agora então, o leitor que dê licença que precisamos ter dois dedos de prosa e tentar tomarmos um amargo com o “bom velho [e] muito estimado João Cardoso”.
- Bueno seu João Cardoso, e quais são as novidades?
Oh! crioulo! Traz mate!”
Depois do que, a prosa se estendeu e correu no tempo, “como água de sanga cheia”.
Dentre as inúmeras façanhas e novidades, que ficamos sabendo a respeito de João Cardoso, foi a de que “o Suplicante é um vassalo benemérito, pelos bons serviços que tem prestado a S. A. Real; que não tem outras terras senão aquelas quatro léguas e meia compradas; sendo um dos mais antigos colonos deste Continente, que em grande parte lhe deu o seu aumento e auge em que se encontra, por ter sido ele, [João Cardoso], o primeiro que instituiu, aqui, a fábrica de carnes de charque, dando aos demais as idéias e noções necessárias para o [desenvolvimento] de um ramo tão vantajoso ao Estado e bem comum, o que é conhecido por V. Exª., [...]”.
A afirmação feita por João Cardoso, quanto a ter sido ele o primeiro que instituiu, aqui, a fábrica de carnes de charque, dando aos demais as idéias necessárias, foi confirmada pelas autoridades da época; diante disso nos indagamos: Pinto Martins ou João Cardoso?
Oh! crioulo!... olha esse mate, diabo!”

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 20 de outubro de 2011.

sábado, 8 de outubro de 2011

O POVOAMENTO DE PELOTAS (28)*



AS DATAS SESMARIAS NA SERRA DOS TAPES E SÃO LOURENÇO DO SUL

A. F. Monquelat
V. Marcolla




A Sesmaria do Alferes José Cardoso de Gusmão e outras passagens (parte 2)

O Juramento do Piloto e do Ajudante da Corda

Aos onze dias do mês de março de mil oitocentos e dois, nesta paragem da Serra dos Tapes e galhos do arroio do Evaristo, distrito da Vila do Rio Grande de São Pedro e termo da de Porto Alegre, onde foi vindo o Juiz Ordinário das Sesmarias, o capitão Thimoteo José de Carvalho, comigo Escrivão do seu cargo, adiante declarado, e sendo aí em casa do ereo Pascoal Pacheco Thadeo de Miranda [?], mandou o dito Juiz vir perante si o Piloto e o Ajudante da corda, aos quais deferiu o Juramento dos Santos Evangelhos, debaixo do qual, encarregou cada um, de per si, que sem malícia ou afeição por pessoa alguma, procedessem na medição requerida, o que eles prometeram cumprir [...].

As Características da Corda e a Fidelidade da Agulha

[...], mandou o dito Juiz vir perante si o Piloto nomeado e o Ajudante da corda, aos quais mandou que trouxessem perante ele a corda com que pretendiam proceder a medição requerida e a medissem, declarando suas braças e qualidade; e, trazendo então a corda perante o Juiz, a mediram e acharam ter vinte e cinco braças, cada uma com dez palmos craveiros; e, declararam que a corda era de couro trançado; [...] e trouxesse perante o Juiz a agulha, e declarasse se estava boa e suficiente, para com ela se procurar os rumos, que necessários fossem [...].

A Medição

E sendo aí, em casas do vizinho Pascoal Thadeo de Miranda, compareceu perante o Juiz, o autor, José Cardoso de Gusmão e por ele, foi dito que havia requerido por Sesmaria meia légua de terras de testada e uma de fundos, principiando a sua testada aonde findasse a medição de seu ereo, João Pedroso Bueno, que presente se achava, e daí seguir rumo do Sul, com fundos para o Oeste, [...] em observância do qual, requeria que mandasse proceder na dita medição, mandando para isso praticar todos os termos da Lei e estilo, o que, sendo assim visto e ouvido o seu requerimento pelo Juiz [...] mandou ao Porteiro eleito, Joaquim Barbasa de Souza e o Ajudante da corda, que apregoassem se havia alguma pessoa ou pessoas, que tivessem dúvidas ou fossem prejudicadas com a medição judicial requerida pelo Autor, que viessem com os seus Embargos no Termo da Lei; o que, sendo assim satisfeito e apregoado pelo Porteiro, três vezes e em alta e inteligível voz, não compareceu pessoa alguma; achando-se presentes os ereos João Pedroso Bueno; o capitão João Cardoso de Gusmão e o capitão Manoel Gonçalves de Meireles, a vista do que, logo o Juiz encarregou, ao Piloto e ao Ajudante da corda nomeados, para prosseguirem na medição [...].
Aos onze dias do mês de março de mil oitocentos e dois, nesta paragem da Costa da Serra dos Tapes, retro declarado, sendo aí dito pelo Piloto medidor e o Ajudante da corda ao Juiz, que ele tinha procedido na Medição dos Autos, na seguinte forma: principiando onde findou a medição da testada do ereo confinante, João Pedroso Bueno, que era, em uma árvore de [ilegível] feita menção nos Autos, e daí, seguiram rumo do Sul, e por ele, disseram medir mil e quinhentas braças, até uma árvore Canela, que tem de circunferência treze palmos, e forma três galhos de altura de quinze palmos, mais ou menos, cujos galhos estão inclinados, um para o Norte; outro para Oeste e outro para o Sueste; e, fica distante do Arroio que vai dividindo, vinte e sete palmos de distância, que tem de circunferência seis palmos; e outra, da mesma qualidade, que fica ao Nordeste, em distância de seis palmos e, os mesmos, de circunferência, onde findara a medição da testada, de que, para constar, faço este Termo [...].
E, logo no mesmo dia, mês, ano e paragem, retro declarado, onde se achava o Juiz Ordinário das Sesmarias, [...], mandou vir o Piloto, e que este lhe declarasse em conta clara e inteligível, a extensão das terras medidas a requerimento do Autor, em superfície, a sua figura com as devidas confrontações [...]. E logo disse que as terras medidas fazem a figura de um retângulo perfeito, o qual, tem na sua testada, de Norte a Sul, meia légua com uma de fundos, para Oeste; vindo assim, a dividir-se pelo Leste, para onde faz testada pelo rumo do Sul, lançado donde principiou esta medição, e findou a do ereo João Pedroso Bueno, até findar a meia légua de testada, onde se achava uma árvore de Canela, pelo qual rumo, se divide com o doutor Firmiano José da Silva Falcão, pelo Oeste, onde faz fundos pelo mesmo rumo de Norte-sul, pela qual, se divide com o capitão Manoel Gonçalves Meireles ou com quem de direito pertencer; pelo Norte, com o rumo de Oeste, lançado onde principiou a medição da testada, pelo qual rumo se divide com as terras que pretende o capitão João Cardoso de Gusmão assim como, os rumos apontados são sem desconto de variação, por não ter usado dela, a vista do qual, logo o dito Juiz teve por declarado e quanto baste esta medição, dando-a por finda e acabada; mandando que, preparados os Autos, se lhe fossem conclusos para serem julgados [...].

A Sentença do Juiz

Julgo esta Medição por Sentença, e mando que se cumpra e guarde como nela se contém, somente para o fim do Autor obter a Sesmaria que pretende; o que, o fará no termo de um ano, com a pena de não o fazendo, se puder dar a quem a requerer; e pague as custas da Medição e Autos, em que o condeno. Fazenda de São João, doze de março de mil oitocentos e dois. Thimoteo José de Carvalho.

A Intimação dos Ereos

Certifico eu, Escrivão abaixo assinado, ter intimado da sentença retro, o capitão João Cardoso de Gusmão e sua mulher; João Pedroso Bueno e sua mulher; e o autor, o alferes José Cardoso de Gusmão, o que eles, de tudo bem entenderam, do que dou fé e passo o referido, na verdade. Fazenda de São João, 12 de março de mil oitocentos e dois. Domingos José Fernandes.
Certifico [...], ter intimado da sentença retro ao doutor Firmiano José da Silva Falcão, [...]. Fazenda de Santa Isabel, treze de março de mil oitocentos e dois [...]”.

As Custas e a Certidão Final


À pedido do alferes José Cardoso de Gusmão, foi passada a Carta de Sentença Cível de Ação e Medição das terras que requereu, “nesta Vila Madre de Deus de Porto Alegre, Continente do Rio Grande de São Pedro do Sul, aos quatorze dias do mês de fevereiro do ano de mil oitocentos e três; e pagou-se o de feitio desta por parte do Autor medido e demarcado, a cujo requerimento petitório, se lhe deu e extraiu na forma do novo Regimento, que neste meu Juízo da Sesmaria se observa e guarda, que ao todo faz a soma e quantia de três mil e cem réis; e, de assinatura, dela não se pagou nada; e, ao selo, o fará com quarenta réis. E eu, Domingos José Marques Fernandes, Escrivão da Sesmarias a subscrevi”.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos foram atualizados e paleografados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 09 de outubro de 2011.

sábado, 1 de outubro de 2011

O POVOAMENTO DE PELOTAS (27)*



AS DATAS SESMARIAS NA SERRA DOS TAPES E SÃO LOURENÇO DO SUL

A. F. Monquelat
V. Marcolla


A Sesmaria do Alferes José Cardoso de Gusmão e outras passagens (parte 1)

A história que se conta, até então, no que diz respeito à presença do alferes José Cardoso de Gusmão nas terras de São Lourenço do Sul, é a de que foi o “primeiro proprietário residente”; e que este teria recebido carta régia de uma sesmaria de terras no ano de 1786. Porém, temos fortes razões para crer que haja alguma confusão quanto a tal afirmação; principalmente, se levarmos em conta que, aos 27 dias do mês de agosto de 1802, João Francisco Vieira Braga vendeu-lhe uma área de terras localizada entre o Logradouro Público e o arroio Pelotas. Área, esta, que o alferes José Cardoso de Gusmão, aos 15 dias do mês de setembro de 1808 transferiu a Boaventura Rodrigues Barcelos (GUTIERREZ, 2001, p. 125).
Um outro registro que queremos fazer aos escassos e pouco precisos dados sobre o Alferes, é o que este, pelo menos no ano de 1804, era charqueador.
Outro dado sobre José Cardoso de Gusmão é o de ser dito que: “Junto a José Cardoso de Gusmão, estabeleceu-se o Capitão Bernardo José Pereira, igualmente através de carta de sesmaria”; e, de que, “José Cardoso de Gusmão, por sua vez, entre 1807 e 1811, vendeu para João Francisco Vieira Braga, as Fazendas São João e Santa Isabel”. Ora, vimos que o lindeiro do capitão Bernardo José Pereira era João Cardoso de Gusmão; assim, como vimos também, que o proprietário das Fazendas São João e Santa Isabel era João Cardoso de Gusmão, que as teve, uma por Carta de Sesmaria, e a outra por compra feita ao testamenteiro do bacharel Firmiano José da Silva Falcão.
Vejamos, através das palavras do próprio Alferes, sua situação por volta da época em que fez compra da área de terras em Pelotas: “Diz o alferes José Cardoso de Gusmão, morador no Continente do Rio Grande, que ele, Suplicante, está vivendo em terras, de favor; e, porque na Serra dos Tapes e galhos do arroio do capitão Evaristo Pinto se acham terrenos de matos e faxinas devolutos, quer o Suplicante que V. Exª. lhe conceda meia légua de testada e uma de fundos; principiando sua testada [frente], onde finda a de João Pedroso [Bueno]; e daí, seguir o rumo do Sul, e em fundos para o Este, vindo assim a dividir-se pelo Leste, para onde faz testada com o doutor Firmiano José da Silva Falcão; e, pelo Este, para onde faz fundos com o capitão Manoel Gonçalves de Meireles; pelo Norte, com João Pedroso [Bueno]; e, pelo Sul, com as terras que pretende o capitão João Cardoso de Gusmão; por isso, pede a V. Exª., se digne conceder-lhe a meia légua de testada e uma de fundos, para a sua plantação e subsistência. E. R. Mercê”.
O requerimento de José Cardoso de Gusmão é provável que tenha sido encaminhado ao Vice-rei, por volta de inícios do ano de 1802, e teve o seguinte despacho: “Informe o Senhor Chefe de Esquadra e Governador, ouvindo, por escrito, a Câmara e o Procurador da Coroa. Rio, 15 de dezembro de 1802 [Rubrica]”.
Considerando as palavras do próprio alferes José Cardoso de Gusmão, de que até àquele pedido, estava “vivendo em terras [alheias e], de favor”, torna-se difícil acreditar que tivesse obtido carta régia de uma sesmaria de terras no ano de 1788, como é dito.
Bem, mas para o bom andamento e fiel cumprimento das formalidades legais, tratou o Alferes de providenciar a medição e demarcação das terras pretendidas; daí, “Diz o alferes José Cardoso de Gusmão, que ele requereu ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor, o Vice-rei do Estado, por Sesmaria, meia légua de testada com uma légua de fundos na Serra dos Tapes, nos galhos do arroio denominado do Evaristo, principiando a sua testada, onde findou a medição de João Pedroso Bueno, e dali, seguir a dita testada ao rumo do Sul, e fundos a Oeste; e, porque mandando o dito Senhor [o Vice-rei], proceder nas informações do estilo, as não pôde o Suplicante obter, sem que por este Juízo as faça medir e demarcar judicialmente, conforme a Ordem do dito Senhor, dirigida à Câmara deste Continente, como consta da certidão anexa, em observância da qual, requer o Suplicante a Vossa Mercê, se sirva mandar proceder a medição judicial das ditas terras, nomeando, para isso, dia e Oficiais do Estilo, na qualidade de Juiz das Sesmarias, mandando proceder na medição requerida e, que se citem, para isso, os ereos confinantes sob pena de revelia, passando-se para tal Mandado. E receberá mercê”.

O Despacho do Juiz

Proceda-se na medição requerida, para a qual, designo o dia onze de março de mil oitocentos e dois; e, para sua medição, nomeio para Piloto a Vicente Ferreira de Souza; e, para ajudante da corda, Joaquim Barbosa, e que sejam citados os ereos, para o que, se passará Mandado”.

O Mandado de Citação dos Ereos
 
O capitão Thimoteo José de Carvalho, cidadão Juiz Ordinário das Sesmarias, com alçada no Cível e Crime, em todo este Continente do Rio Grande de São Pedro do Sul, por eleição na forma da Lei e etecétera: Mando, a qualquer Oficial de Justiça, a quem este for apresentado, que indo por mim assinado, procurem os ereos confinantes do Suplicante e os notifiquem para todo o conteúdo do requerimento retro, e que, cumpram. Dado e passado nesta Fazenda de São João Batista, aos dez de março de mil oitocentos e dois; e eu, Domingos José Marques Fernandes, Escrivão das Sesmarias, o escrevi”.
Entendemos aqui ser necessário uma observação quanto ao local onde o Juiz das Sesmarias disse ter firmado o documento: “Fazenda de São João Batista”. Bem, ao que parece, caso a Fazenda em referência fosse nas terras do alferes José Cardoso de Gusmão, como era de praxe, estaríamos diante de um homônimo da também denominada São João, de propriedade do capitão João Cardoso de Gusmão; o que explicaria o equívoco quanto à venda feita a João Francisco Vieira Braga. Por outro lado, levando em conta as palavras do Alferes, quando nos diz que estava “vivendo em terras [alheias e], de favor”, é possível que essas terras fossem na fazenda do capitão João Cardoso de Gusmão.

As Notificações dos Ereos, do Piloto e do Ajudante da Corda

Certifico eu, Escrivão abaixo assinado, ter notificado ao doutor Firmiano José da Silva Falcão; o capitão Manoel Gonçalves Meireles; o capitão João Cardoso de Gusmão e sua mulher, na pessoa dele, e a João Pedroso Bueno e sua mulher; o que eles bem entenderam, e dou fé. Assim como, notifiquei ao Piloto e ao Ajudante da corda, para receberem o juramento e darem cumprimento ao despacho retro [...].


Continua...

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Nota: Os documentos transcritos foram atualizados e paleografados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 02 de outubro de 2011.