sexta-feira, 28 de maio de 2010

EM PELOTAS, FOI CRIADA UMA FREGUESIA*


A. F. Monquelat
V. Marcolla


Há pouco publicamos um livro, cujo título é “O processo de urbanização da cidade de Pelotas e a Fazenda do Arroio Moreira” e que, por razão agora irrelevante, substituiu o título original dado, o de “Os primórdios da urbanização de Pelotas”.
Nosso trabalho tem a “brilhante apresentação” do Dr. Carlos Francisco Sica Diniz, o qual, por sua vez, demonstra o grande conhecimento que tem da história e da historiografia de Pelotas.
Essa publicação foi prematura; mas, por alheias circunstâncias, não nos restou outra alternativa, que não, a de deixá-la acontecer de forma independente ao projeto maior, que será o trabalho sobre “O povoamento de Pelotas”, em dois volumes, e que, de maneira abreviada, estamos, desde 21 de março de 2010, publicando semanalmente aqui no Diário da Manhã.
As pessoas que já leram o livro podem ter estranhado a ausência, no corpo do trabalho, ou em forma de anexo, do Alvará de 7 de julho de 1812, que é entendido como o documento de criação, da hoje, cidade de Pelotas. E isto é um dos motivos, ou o principal motivo deste artigo.
A razão de termos dado ênfase à Resolução de 31 de janeiro de 1812 é porque entendemos ser esta a data que “Crêa [cria] as freguesias do Arroio Grande, Pelotas, e Cangussú na Capitania de S. Pedro do Rio Grande do Sul”, quando “Foi ouvida a Mesa de Consciência e Ordens sobre o requerimento dos moradores do Arroio Grande, Pelotas e Cangussú, pertencentes à Freguezia de S. Pedro do Rio Grande do Sul, em que pedem a creação [criação] de Freguezias nos referidos logares” (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010, p. 54, grifos nossos). Grifamos a palavra Pelotas, por ter sido com este nome criada a Freguesia.
Depois de receber os despachos favoráveis: “Vossa Alteza mandará o que for servido. Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 1812”. Ao que o Príncipe Regente deu o seu “Como parece. – Palácio do Rio de Janeiro, 31 de Janeiro de 1812. – Com a rubrica de Sua Alteza Real” (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010, p. 55).
Antes de reproduzir e comentarmos o Alvará de 7 de julho de 1812, vejamos, através de dicionário de época, o significado de freguesia: “S. F. Igreja paroquial. O conjunto de fregueses de uma paróquia [...]” (MORAES, 1889).

O ALVARÁ (com texto atualizado)

“Eu, o Príncipe Regente de Portugal, e do Mestrado Cavaleiro, e ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo: faço saber aos que este meu Alvará virem, que atendendo à grande extensão que abrange a Freguesia de São Pedro do Rio Grande do Sul deste Bispado; e que desmembrando-se dela algumas outras Freguesias serão seus habitantes muito melhor socorridos do Pasto Espiritual. Hei por bem conformar-me com o parecer do meu Tribunal da Mesa da Consciência, e ordens desta corte, informação do reverendo bispo meu capelão-mor, e respostas dos procuradores gerais das ordens e do da minha real presença em consulta digo e da minha real coroa e fazenda, que tudo subiu à minha real presença em consulta do meu referido tribunal, erigir uma nova Freguesia Colada no lugar denominado Pelotas, desmembrando-a da Freguesia mencionada de São Pedro. Pelo que mando a vós, reverendo bispo capelão-mor e do meu conselho, demarqueis a esta nova Freguesia os limites por vós designados nas informações, que se vos cometerão sobre esta mesma divisão. Este se cumprirá como nele se contém sendo passado pela chancelaria das ordens, e registrada nos livros da Câmera deste bispado, e no de ambas as sobreditas Freguesias, e valerá como Carta, posto que seu efeito haja durar mais de um ano sem embargo das ordenações em contrário. Rio de Janeiro, sete de julho de mil oitocentos e doze. Príncipe.
Alvará pelo qual Vossa Alteza Real há por bem Erigir uma Nova Freguesia no lugar denominado de Pelotas, desmembrando-a da Freguesia de S. Pedro do Rio Grande do Sul deste Bispado, como acima se declara – Para Vossa Alteza Real Ver. – E eu, Padre Francisco dos Santos Pinto, Escrivão da Câmera a subscrevi, e assinei. O Padre Francisco dos Santos Pinto. – Desta, cento e trinta reis” (grifos nossos).
Vimos, então, o Alvará, pelo qual Vossa Alteza Real houve por bem “erigir uma nova Freguesia, no lugar denominado de Pelotas, desmembrando-a da Freguesia de São Pedro do Rio Grande do Sul deste Bispado [...]” (grifos nossos).
Um detalhe nos parece relevante destacar no corpo do Alvará, que é o “valerá como Carta, posto que seu efeito haja de durar mais de um ano, sem embargo das ordenações em contrário”. A razão desta ressalva, “valerá como Carta”, é porque os Alvarás não levavam o selo real e o prazo de validade era de um ano. Já a Carta de Lei ou Carta expressava a vontade soberana do Monarca e que, de modo geral, era o mesmo que Lei.
Outro ponto a destacar é o de “erigir uma nova freguesia colada no lugar denominado Pelotas, desmembrando-a da Freguesia mencionada de São Pedro”. Entendemos que isto possa ser visto como fundar, instituir, criar uma freguesia que goze de benefício eclesiástico: pároco, ou vigário colado; por isso, desmembrá-la da Freguesia de São Pedro (Rio Grande).
Bem, podemos dizer que a Freguesia referenciada na Resolução de 31 de janeiro e posteriormente no Alvará (Carta) de 7 de julho de 1812 é Pelotas e Freguesia, vimos que é o mesmo que “Igreja paroquial. O conjunto de fregueses de uma paróquia” e que esta foi criada no lugar denominado de Pelotas. Em momento algum dos atos houve referência ao nome de São Francisco de Paula. Portanto, este nome foi adotado depois e serviu para designar a paróquia e seus fregueses, não abrangendo assim o resto, que era o Distrito como um todo; e que permanecia, administrativamente, subordinado a Rio Grande.
No Decreto de 7 de dezembro de 1830 consta: “Eleva à Vila, a Freguesia de São Francisco de Paula, na Província do Rio Grande do Sul”, e Sua Majestade Imperial diz: “Hei por bem sancionar e mandar que se execute o que Resolveu a Assembléia Geral Legislativa, sobre Resolução do Conselho Geral da Província do Rio Grande de S. Pedro do Sul. [...]. No seu termo, compreende-se o distrito da mesma Freguesia, Boqueirão e Serro da Barra [leia-se, da Buena]. [...]”.
Acreditamos ter sido neste Decreto, onde, por primeira vez, o espaço urbano do distrito de Pelotas é denominado como Freguesia de São Francisco de Paula; sem, contudo, alterar o todo, que era o “lugar denominado Pelotas”.
Diante do exposto, podemos concluir que o nome Pelotas, em momento algum deixou de ser Pelotas, mesmo quando da Resolução que criou a freguesia no “lugar denominado”. E que o nome São Francisco de Paula foi denominação religiosa dada à Paróquia e seus fregueses, instalados nos arredores da Igreja, espaço este, que deu início ao perímetro urbano do distrito de Pelotas, cujos primórdios foram consequência dos contratos de arrendamento feitos pelo capitão Antônio Francisco dos Anjos, nas terras de sua propriedade.
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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, em 29 de maio de 2010.

Referências

LAZZARI, J. R. Um livro, uma cidade e suas origens. Jornal Diário da Manhã, Pelotas, p. 14, 13 maio 2010.
MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O processo de urbanização de Pelotas e a Fazenda do Arroio Moreira. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010.
MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O povoamento de Pelotas. vol. I e II. (No prelo).
SILVA, A. de M. Diccionario da língua portugueza. 8ª ed. Revista e melhorada, vol. I e II, Rio de Janeiro: Empresa litteraria Fluminense, 1889/91.
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Locais onde este livro pode ser adquirido:
Big Ben Conveniências (Nacional da Cohabpel)
Revistaria Ler & Lazer, Santa Cruz, esq. D. Pedro II
Sebo Icária, Tiradentes, entre 15 e Anchieta
Livraria Monquelat – Rua General Telles, nº 558

quarta-feira, 19 de maio de 2010

O DESBRAVAMENTO DO SUL E A OCUPAÇÃO CASTELHANA



Apresentação do livro “O Desbravamento do Sul e a Ocupação castelhana” de autoria de A. F. Monquelat e V. Marcolla.



APRESENTAÇÃO

A compreensão do processo de constituição político-social da região Meridional na América do sul, particularmente da região hoje compreendida pela República do Uruguai e pelo Estado brasileiro do Rio Grande do Sul tem representado um desafio aos seus estudiosos.
Há sem dúvida, muitas lacunas que precisam ser preenchidas como, provavelmente, muitas assertivas e, eventualmente, muitas conclusões que necessitam ser refeitas, re-elaboradas e mesmo rechaçadas. O que, sob certo aspecto, é o processo natural de evolução da ciência e, de modo especial, do conhecimento histórico, que é realizado muito mais sob “verdades provisórias” do que sob dogmas.
Em muitos casos a explicação para a superficialidade e/ou imperfeição das análises em relação á gênese da formação histórico-social deste território está associada às dificuldades de acesso às fontes primárias e mesmo à inexistência delas. De modo que, a “produção”, organização e divulgação de documentos históricos como se propuseram MONQUELAT & MARCOLLA se constituem em fenômeno alvissareiro, pois nos brindam com uma contribuição à historiografia da região pampeana de sobeja e reconhecida importância.
Evidentemente, como os próprios autores sinalizaram, na medida em que relutaram ao extremo em imiscuir-se nos documentos apresentados, a apreensão dos mesmos deve ser feita à luz dos conhecimentos históricos dos leitores e em confrontação com outras fontes históricas que possam permitir a comparação e eventuais referendos às informações históricas que os diversos atores do processo de ocupação da região em análise deixaram gravados em seus escritos.
Assim é importante conferir as concepções sobre os acontecimentos objeto deste livro que o leitor naturalmente elaborará com a de outros autores que já direta ou indiretamente se debruçaram a analisar este período da formação sócio-histórica do Rio Grande do Sul. Dentre eles destaco o trabalho de Aurélio Porto, João Borges Fortes, J, Hafkemeyer e o próprio Visconde de S. Leopoldo, de certa forma, o pioneiro.
De maneira que estas múltiplas visões deverão transformar-se em sínteses capazes de serem elementos geradores, por sua vez, de novas perspectivas históricas.
O que precisa ser ressaltado é que todo o trabalho que se destine a socializar fontes primárias é passível de encômios e é o caso deste que, por tudo isto, significa uma contribuição inestimável e que deverá constituir-se como valioso subsídio para novas investigações.
Espero que todos façam uma boa leitura e realmente apreendam as reais e efetivas contribuições de que este trabalho é constitutivo.

Fevereiro de 2010.

Elomar Tambara
Professor Dr. do Programa de Pós-Graduação
 em Educação (FaE/UFPEL)





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O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DE PELOTAS E A FAZENDA DO ARROIO MOREIRA


Apresentação do livro
“O processo de urbanização de Pelotas e a Fazenda do Arroio Moreira”

NOTA DE APRESENTAÇÃO

Pesquisando em fontes primárias supostamente inéditas na historiografia sul-riograndense, Monquelat e Marcolla trazem a público uma nova versão sobre os primórdios da urbanização de Pelotas.
Partindo de constatações a princípio despretensiosas, os autores vão ordenando suas informações por meio de linguagem simples e esclarecedora, sempre lastreada nas fontes que escolheram e que iluminam todo o texto de forma harmônica, conclusiva e parcimoniosa. Em vez de cansar o leitor, sempre avesso às leituras dos documentos oficiais, o texto é leve e prende a atenção na medida em que os fatos relatados vão avançando sem pressa, até que de repente se descortina a conclusão inevitável de que se está diante de uma nova e atraente versão sobre o começo do povoamento do centro urbano da Freguezia de Pelotas, como foi denominada na Resolução de Consulta da Mesa de Consciência e Ordens, expedida no Palácio do Rio de Janeiro, em 31 de janeiro de 1812, com a rubrica de Sua Alteza Real.
O texto reporta-se à luta do capitão Antonio Francisco dos Anjos para obter, perante a régia autoridade imperial, autorização para oficializar os contratos de arrendamentos (ditos aforamentos com certa imprecisão) que disse à Corte ter celebrado com os primeiros povoadores da Freguezia, mediante renda anual de 320 réis por braça, sobre as terras que havia adquirido em 16 de novembro de 1807. E no andar dos fatos, rigorosamente documentados, o leitor ficará conhecendo as desavenças que se sucederam entre o proprietário e a significativa parcela dos primitivos possuidores fundiários que se mostrou recalcitrante em pagar a soma pretendida. Surgem os nomes dos primeiros povoadores de Pelotas, o que ensejará a abertura de novas pesquisas sobre os descendentes desses precursores e sua futura relação com a cidade. Revelam-se, nos mínimos pormenores, os andamentos burocráticos do processo administrativo promovido pelo capitão Antonio dos Anjos, até se chegar à autorização oficial concedida pela Corte de D. João, Rei do Reino Unido de Portugal, e do Brasil e Algarves, em 11 de dezembro de 1817. Nos exatos termos da outorga imperial, o capitão Antonio Francisco dos Anjos recebeu autorização para obter uma renda a ser paga pelos cessionários das frações urbanas de Pelotas, sob forma e valores distintos daqueles que pretendia, pois lhe foi passada Provisão que, proibindo definitivamente os arrendamentos, reduzia os instrumentos de cessão a contratos enfitêuticos (foro perpétuo), com o laudêmio de quarentena (o que melhor atendia aos interesses dos povoadores).
A pesquisa de Monquelat e Marcolla insere-se na micro-historiografia de Pelotas, na medida em que aborda – sob a ótica da tradição dos anais – os fatos específicos que cercaram os primórdios da sua urbanização, modificando narrativas tradicionais e trabalhando com fatos que ainda não haviam sido revelados, até mesmo no que respeita à primazia da denominação “Freguezia de Pelotas”.
Nessa linha de prestígio dos anais históricos seguida pelos autores, caberia fazer alusão aos ensinamentos de Carlo Ginzburg (A Micro-História e outros ensaios) quando se reporta aos seguintes conceitos: “os anais, não obstante a sua rudeza estilística, mereciam ser mais apreciados do que a história, pois que são o verdadeiro fundamento dela. (...) O não serem atraentes, devido à rudeza do estilo e à falta de uma real estrutura narrativa, esconde um grande tesouro, algo de mais precioso do que o ouro e as jóias: a verdade”.
Pois bem, neste ensaio de micro-história, opondo-se à retórica, os autores prestigiam os anais históricos que permeiam o texto e cedem passagem a eles, fazendo com que os registros oficiais contem a história em sua rudeza estilística, porém verdadeira e inovadora.

Carlos Francisco Sica Diniz
Professor Aposentado da UFPEL





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sexta-feira, 14 de maio de 2010

JOSÉ PINTO MARTINS, O CHARQUE E PELOTAS



A. F. Monquelat
V. Marcolla


Desde o primeiro dia da divulgação de nosso artigo sobre “O Povoamento de Pelotas”, aqui no DM, publicado em 21 de março de 2010, amigos e conhecidos que o leram fizeram a mesma observação; a de que “estávamos negando a precedência de José Pinto Martins na fundação da cidade de Pelotas”.
A resposta que lhes demos foi: “Sim, e não”. E esta está implícita no corpo do artigo.
De qualquer forma, neste novo artigo, procuraremos explicitá-la; porque é provável que outros tenham pensado o mesmo.
A concepção da precedência, atribuída ao português José Pinto Martins, remete-nos a pelo menos dois outros sinônimos, quais sejam: prioridade e primazia. E estes, a dizer que um e outro podem ser compreendidos como a qualidade do que está em primeiro lugar. Ora, dissemos nós que “a história de uma cidade é a história da pluralidade de seus habitantes e cidadãos”. Que, por sua vez, também pode ser entendido que o surgimento e a origem da maioria das cidades não está relacionado a um único nome. E que Pelotas não é um caso à parte. Portanto, sua fundação não se deve tão somente ao nome de José Pinto Martins e muito menos à primitiva charqueada deste.
Pelotas, voltamos a dizer, é fruto do agro-pastoreio. E esta afirmação procuraremos deixar mais evidente no decorrer de nosso trabalho sobre o “O Povoamento de Pelotas”. Porém, aproveitamos o momento para tentarmos explicar a procedência dessa insistência de associarem o nome de Pinto Martins à fundação de Pelotas.
É bastante provável que o ponto de origem ou a fonte primaria seja João Simões Lopes Neto, quando nos fala sobre Pinto Martins, ao divulgar sua “Revista do 1º Centenário de Pelotas” nos anos de 1911 e 1912. E cujo legado, parcial, é o de que: “Por 1777/80, vindo do Ceará, aportou ao Rio Grande um homem que conhecia o fabrico da carne do sertão [...] por um processo garantidor da sua longa conservação: a salgação, a enxerca ou enxarque da carne. Esse obscuro industrial, que não deixou – que saibamos – de si outra notícia, esse, mesmo sem a consciente previsão do alcance do seu cometimento, esse foi José Pinto Martins, a quem cabe a precedência na fundação da futura cidade” (grifos nossos).
E logo a seguir, nos diz Simões Lopes que, “Sabe-se que em 1780, numa parte dos terrenos de Manoel Carvalho de Souza (Arroio Pelotas), fundou José Pinto Martins, vindo do Ceará [...], uma charqueada” (LOPES NETO, 1994, p. 17, grifo do autor).
Teríamos, se quiséssemos, vários pontos de divergência quanto às afirmações feitas por Simões Lopes; mas, abordaremos apenas aqueles que nos parecem mais relevantes, quais sejam: A) a afirmação feita sobre precedência na fundação da futura cidade de Pelotas; B) a diferença no charqueio, ou fabrico, entre a carne-do-sertão (carne-de-sol) e a carne-do-sul ou charque; C) quanto ao ano de instalação da charqueada de Pinto Martins, que, diz Simões Lopes, ter se dado em 1780, e “numa parte dos terrenos de Manoel Carvalho de Souza”.
Ainda que a história não seja o ponto alto da obra do regionalista João Simões, é inconsequente negar o mérito dos apontamentos históricos, que Lopes Neto nos legou, nos quais, e por primeira vez, vamos encontrar o arrolamento das charqueadas de Pelotas.
Para que Pinto Martins tivesse a primazia de precedente, que lhe imputam, seria necessário ter chegado ao Arroio Pelotas (no terreno compreendido pela área da Sesmaria do Monte Bonito) trazendo gado, sal e mão de obra, o que obviamente não aconteceu.
Pinto Martins se estabeleceu, e para isso teria de ter permissão, dizem que em terreno do tenente Manoel Carvalho de Souza, o que entendemos pouco provável. Acreditamos, no caso de realmente ter sido no ano de 1780, o ano que Pinto Martins instalou a sua primitiva charqueada, que o fez por permissão do padre Pedro Pires da Silveira, que a tinha adquirido, através de escritura pública, em 7 de março de 1780, ou por permissão do, na época, alferes Antônio Ignacio da Silveira, que a comprara do padre Pedro Pires da Silveira em 4 de abril de 1781. Não estranhamos de o transpasse de um sesmeiro para outro não ter constado em registro ou confirmação da presença de Pinto Martins e sua charqueada; porque, a presença de charqueadas na Sesmaria era um fato de pouca importância ao sesmeiro, que tal permissão concedia por contrato, quando não parentes; ou permissão pura e simples no caso de vínculo familiar. As instalações de uma charqueada ou fábricas de carnes, naquele período, eram tão rústicas e insignificantes, que qualquer valor a elas atribuído seria por demais irrisório.
Ressalve-se que esta afirmação cabe e deve ser entendida e aplicada para a fase inicial das charqueadas; principalmente às charqueadas instaladas em terras de terceiros, que era o caso da maior parte delas.
Bem, mas o que pretendemos mesmo dizer é que, caso Simões Lopes tenha mesmo pretendido dizer o que disse, ou o que por ele nos parece ter sido dito, não observou que ao dizê-lo, disse, trazendo no próprio dito a negação do que estava a dizer; pois ninguém pode ter precedência no caso em foco, quando, para isto, está instalado “numa parte dos terrenos de Manoel Carvalho de Souza”. O que é uma contradição. Caso essa precedência seja uma referência ao fato da incipiente charqueada de Pinto Martins ter servido de pedra fundamental no surgimento e desenvolvimento da Pelotas urbana, é ter, Simões Lopes, dado importância maior à pouca importância que teve Pinto Martins e sua charqueada num populoso ambiente agro-pastoril já existente quando neste chegou.
Um ponto nas afirmações feitas por Simões Lopes é o que realmente nos inquieta: de onde será que Simões tirou a data de 1780 como ano de instalação da primitiva charqueada de Pinto Martins?
E tal indagação nos conduz à outra: por que será que a historiografia tomou o ano de 1780 como data de referência, sem questionar a origem da informação feita por Simões Lopes Neto?
Quando, no máximo, deveria ter pego esta data de 1780 como um indício; jamais como prova ou certeza.
Deixamos aqui, novamente, a pergunta: de onde tirou Simões Lopes Neto tal afirmação? E não esqueçam que Manoel Carvalho de Souza transpassou toda a Sesmaria ao padre Pedro Pires da Silveira em 7 de março de 1780.

Deixamos propositadamente o ponto B das três divergências, que nos propusemos a dialogar com Simões Lopes Neto, quanto aos seus apontamentos históricos no que diz respeito à figura de José Pinto Martins, por último, porque, em nosso entender, é o mais importante deles.
Disse Simões Lopes que: “Por 1777/80, vindo do Ceará, aportou ao Rio Grande um homem que conhecia o fabrico da carne do sertão [...] por um processo garantidor da sua longa conservação: a salgação, a enxerca ou enxarque da carne”.
Vejamos primeiro o que era o conhecimento de Pinto Martins quanto ao fabrico da carne. Salgação, enxerca ou enxarque são sinônimos; portanto, são três palavras para designar o mesmo conhecimento ou técnica, embora a palavra mais apropriada, no caso, seja enxarque.
Daí, optarmos por enxarque para esclarecer que é o mesmo que charque, mas no caso de Pinto Martins, há uma diferença, pequena, mas há; pois a carne-do-sertão ou carne-de-sol é o processo de enxercar a carne, ou fazê-la em mantas e tassalhos, e secá-la ao sol.
Até aí, nada de novo no conhecimento de Pinto Martins; mas, pela forma que Simões Lopes Neto escreveu sobre o tal conhecimento: o “processo garantidor da sua longa conservação”, fica-nos a impressão de que Simões Lopes Neto pouco sabia sobre a história do charque na região do Continente do Rio Grande e regiões do Prata.
E é um pouco desta história, que pretendemos, ainda que de forma concisa, a partir de agora, explicar.
A história do charque, na sua universalidade, é pouco provável que venha a ser escrita, e caso seja feita, é possível que esta inicie a ser contada a partir do ano de 1476, onde aparece por primeira vez e “se cita enxerca, do c. 49 dos Art. das Sisas, de 27 de setembro de 1476”.
Saltando da Europa para o Rio da Prata, vamos encontrar uma permissão concedida por Felipe III, em 1602, na qual as províncias do Rio da Prata podiam, por um período de seis anos, extrair frutos de sua colheita e exportá-los em navios próprios “num total de [...] 500 quintales [um quintal = 4 @ espanholas] de cecina e 500@ de sebo [...]”.
Cecina é o charque envolto em graxa e posto em barricas. Tempos depois, charque e cecina foram substituídos por tasajo.
Este sistema de embarricar carnes era a forma usada pelos irlandeses, que durante longo tempo foram os principais abastecedores das Armadas Reais.
Por não conhecermos bibliografia sobre o tipo de charque produzido pelos irlandeses, ficamos em dúvida quanto à técnica usada por eles; mas acreditamos seja o processo de moura, que consistia em acrescentar ao charque embarricado o licor formado pelo sal desfeito, uma espécie de salmoura.
A técnica desenvolvida pelos irlandeses foi motivo de admiração e inveja de muitos que se aventuraram nesta atividade saladeiril.
Entre os espanhóis saladeristas consta-nos ter sido Don Francisco de Medina o primeiro a conseguir em seu saladero, através da instalação de um laboratório montado no estabelecimento, dirigido por técnicos irlandeses, esta façanha.
Tal feito, segundo palavras do Vice-rei Nicolás de Arredondo, ao falar sobre tal, é que Medina, no ano de 1787, “havia descoberto o segredo e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência das do Norte”. Em nada mais consistia – acrescentou o monarca em relação à forma vencedora – que em sublimar “la salmuera del barril con una corta dosis de sal nitro” (MONQUELAT, 2009, p. 95).
Já, com relação aos Portugueses em seus domínios na América do Sul, podemos dizer que a história do charque, pelo menos até então, teve necessariamente de passar pela Colônia do Sacramento. Isto, no final do Século XVII, graças às exitosas experiências realizadas pelo governador Francisco Naper e continuadas no início do século seguinte por Sebastião Xavier da Veiga Cabral, quando atingindo elevados níveis de produção, tornou possível exportar tais carnes para o Brasil e Portugal.
Antes de vermos o charque no Continente de São Pedro, gostaríamos de lembrar que, anterior ao período da colonização espanhola, os indígenas da América do Sul preparavam o charqui ou charque, carne secada ao sol, sem agregar sal, o qual se chamou também de charque doce, em oposição ao tasajo ou charque salgado, preparado com sal (GIBERTI, 1970, p. 26).
No Continente do Rio Grande, parece que tal atividade se deu por volta da terceira década do Século XVIII, na região do Quintão, jurisdição de Tramandaí.
Considerando que o tema das charqueadas ainda é um objeto por explorar com maior profundidade, pois o que até agora surgiu, surgiu de maneira incipiente, pretendemos a lo largo, colaborarmos com um trabalho, provisoriamente titulado de “Apontamentos para uma história das charqueadas do Continente de São Pedro do Sul”, e é deste trabalho que tiramos os seguintes dados: “Francisco Lopes, morador da Vila do Rio Grande, recebeu do governador Gomes Freire de Andrada em uma Carta de Sesmaria, datada de 19 de maio de 1752, uns campos devolutos na paragem denominada o Retovado, com três léguas de comprido e uma de largo, que partiam pela banda do Sul, com os Morros Vermelhos e a porteira do Carro; e pela parte do Norte, com a Fazenda de Manoel Jorge, chamada a Charquiada (sic); pela banda de leste com as praias do Mar Grosso; e pela parte do Oeste com a Fazenda do Carro.
Outro confrontante de Manoel Jorge e da Estância chamada a Charquiada (sic) era Domingos Fernandes de Oliveira, que também recebeu de Gomes Freire de Andrada, em 25 de agosto de 1755, uma Carta de Sesmaria em cujo corpo consta que ele, Domingos Fernandes de Oliveira, estava de posse da Estância chamada do Quintão, que povoara com grande número de gado cavalar, e que confrontava pelo Sul com a estância chamada a Charquiada (sic), cujo proprietário era Manoel Jorge” (MONQUELAT e MARCOLLA, s/d, grifos nossos).
Concluindo, lembramos que em nosso artigo publicado em 21 de março de 2010, sobre o povoamento de Pelotas, dissemos que: “Charquear, no Continente do Rio Grande, já era prática estabelecida desde os primórdios do Século XVIII. E, nesta região, tal hábito antecede à chegada do Brigadeiro José da Silva Paes, como se pode ver na carta enviada a Gomes Freire de Andrada em 12 de março de 1737: ‘Porque há aqui uma tal praga de bichos, que chamam de traça, que tem arruinado vestidos, roupas e sapatos bem como o cartuchame. Este bicho come não só o papel, mas também a pólvora e ainda por ele vi até balas roídas. Quem aqui fosse nojento comeria muito pouco, porque são eles em tamanha abundância que estão caindo no prato por estarem as barracas cheias deles e de moscas que é uma imensidade. Tudo nascido do charque que aqui faziam [...].’ (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010, p. 96, grifos nossos)”.
Agora nos perguntamos: José Pinto Martins trouxe alguma novidade para ensinar através de seu conhecimento do “fabrico de carne do sertão [...] ou processo garantidor da sua longa conservação” aos paisanos e militares, já experientes, desta região?






Referências


GIBERTI, H. C. E. Historia económica de la ganadería argentina. Buenos Aires: Ed. Solar/Hachette, 1970.

LOPES NETO, J. S.
Apontamentos referentes à história de Pelotas e outros dois municípios da Zona Sul: São Lourenço e Canguçu. Pelotas: Armazém Literário, 1994.

MONQUELAT, A. F.
Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F.
Senhores da Carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed. Universitário/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V.
O desbravamento do Sul e a ocupação castelhana. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V.
O povoamento de Pelotas. vol. 1 e 2. Pelotas, 2010. (no prelo).

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V.
Apontamentos para uma história das charqueadas do Continente de São Pedro do Sul. s/d. (mimeo).

O POVOAMENTO DE PELOTAS (3)



SESMARIA DA FEITORIA E A REAL FEITORIA DO LINHO-CÂNHAMO



A. F. Monquelat
V. Marcolla
 
Em ofício enviado do Rio Grande aos 19 dias de fevereiro de 1755, o governador Gomes Freire de Andrada informava a Diogo de Mendonça Corte Real que “as sementes de linho cânhamo as deixaram aqui arruinar: a terra é própria para esta cultura: tenha V. Exa. a bondade de mandar um par de barricas de linhaça em esta embarcação com o cuidado de que a tragam na Câmara para que se não aquente e queime porque dizem os inteligentes se colherá o linho cânhamo em abundância”.
Apesar das várias tentativas ocorridas desde o ano de 1747 para estabelecer a cultura do linho-cânhamo entre os moradores de Santa Catarina e do Rio Grande, todas fracassaram devido à dificuldade de adaptar-se as sementes, ao desinteresse das autoridades locais e dos lavradores, é o que nos diz Marcia Eckert Miranda.
Ainda, segundo Miranda, como todas as tentativas de fazer evoluir esta atividade por intermédio de lavradores privados tornavam-se infrutíferas, a Coroa decidiu promovê-la através do poder público, e estabelecer uma Feitoria com recursos da Fazenda Real.
E assim: “Esta Feitoria surgiu como um estabelecimento diverso dentro da estrutura da administração da capitania; seu objetivo era executar uma política do governo, por isso, não era necessário que se integrasse à estrutura administrativa existente” (MIRANDA, 2000, p. 143-146).
Gonçalves Chaves nos diz em sua Mémorias ecônomo-políticas que “mandou-se criar uma feitoria de cânhamo nesta província e veio encarregado deste negócio um tal Faxina [...], Rafael Pinto Bandeira, que comandava então o Rio Grande, foi logo incomodado pelas requisições que Faxina fazia de algumas coisas precisas para a Feitoria e tais violências lhe fez que o bom Faxina teve por melhor fugir: largou tudo por mão e não parou senão em Lisboa”.
No entanto, o ofício do governador do Rio Grande de São Pedro do Sul, Paulo José da Silva Gama, de 25 de 07 de 1803, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, visconde de Anadia (João Rodrigues de Sá e Melo), sobre o estado da cultura do linho-cânhamo na capitania, no qual, em anexo, segue o ofício do inspetor da Real Feitoria do Linho-cânhamo, Padre Antonio Gonçalves Cruz, onde consta: “[...] porque; tendo sido fundada esta Feitoria no Rincão de Cangussú no ano de 1783, por Ordem do Exmo. Snr. D. Luiz de Vasconcelos e Souza então Vice Rey do Estado, e por uma antecipada escolha que do dito Rincão tinha feito o Reverendo Francisco Rodrigues Xavier Prates, seu primeiro Inspector e fundador; foi logo depois de estabelecido este, removida para estes Faxinaes ou Campestres [...]”.
Considerando que as Memórias ecônomo-políticas de Gonçalves Chaves foram posteriores ao Ofício do governador Paulo Gama, ou o tal Faxina não chegou a instalar a Feitoria, ou o Governador ignorava tal fato.
De qualquer forma, a administração do Reverendo Prates – ao que tudo indica iniciada em 1º de outubro de 1783 – durou pouco, pois este logo faleceu.
Poucos anos depois, Antonio José Machado Morais Sarmento, em carta dirigida ao Coronel Rafael Pinto Bandeira, datada na “Real Feitoria do Linho Cânhamo de Cangoçú a 30 de junho de 1788” informou que: “[...]. Como me vejo nesta tão importante Comissão da Inspeção desta Real Feitoria para onde entrei achando-a estabelecida com bastantes irregularidades pela falta de conhecimento que havia nos meus antecessores; do que isto devia ser, por terem sido sujeitos que nunca viram semelhante cultura; desejo-me hoje mostrar, que não professo a mesma ignorância [...]”.
Conforme o documento que a seguir transcreveremos, podemos afirmar que José M. Morais Sarmento foi o último Inspetor da “Real Feitoria do Linho Cânhamo de Cangoçú” e o primeiro no novo local para onde a transferiram, o Faxinal da Courita.
O referido documento, firmado por Sarmento aos 23 dias do mês de fevereiro de 1789, tem o seguinte teor: “[...]. Lançamento de uma atestação passada a Paulo Rodrigues Xavier Prates: Antonio José Machado Sarmento, Tenente da Cavalaria Auxiliar, e Inspector da Real Feitoria do Linho Cânhamo de Sua Majestade, atesto que na Marcha que fiz da foz do Rincão de Cangosú donde se achava estabelecida a Real Feitoria do Linho Cânhamo para o novo estabelecimento que ia formar no faxinal da Courita por ordem do Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Vice Rey em todos os destritos deste Continente por onde transitei na dita marcha com os Feitores, Escravos e Trem [utensílios] de Sua Majestade com cujos ia formar a nova Feitoria me utilizei dos transportes, e providências que se me facilitaram pelos Comandantes dos ditos districtos em conformidade das Ordens de Vossa Senhoria sendo a excessão da regra a última marcha que fiz da freguesia de Nossa Senhora dos Anjos [da Aldeia] a entrada dos Matos gerais do Sertão pois nela me utilizei somente da voluntária oferta que me foi fazer o Capitão Mór que foi da Vila da Laguna Paulo Rodrigues Xavier Prates, morador na dita freguesia [de Nossa Senhora dos Anjos] franquiando-me as suas carretas, Bois, Peões, e Cavalos que me foram necessários para todos os ditos transportes atribuindo tudo ao zelo com que deseja servir a Sua Majestade. E por esta me ter sido pedida e mandada passar faço a presente que juro aos Santos Evangelhos sendo necessário. Nova Feitoria do Faxinal da Courita (23.02.1789)”.
Concluindo – por hora – queremos ainda dizer que Paulo Prates, anexando uma vasta documentação, requereu em fevereiro de 1806 o posto de “Coronel Graduado de Cavalaria de Milícias no Continente do Rio Grande de São Pedro”, esperando receber tal mercê “em atenção aos seus serviços e de seu Pai”.
Um ano e tanto depois de cumpridas todas as formalidades decorrentes da burocracia colonial portuguesa, decidiram (?) em Lisboa aos 27 de julho de 1807 “que lhe pode ser conferido por V[ossa] A[lteza] R[eal], que rezolverá como for milhor”.
Mas vejamos antes outra Sesmaria de propriedade de Paulo Prates, que pode tê-lo levado a adquirir a da Feitoria: “Ilmo. Exmo. Sr./Diz Paulo Roiz Xavier Prates, morador no Continente do Rio Grande, que por Ordem do atual Governador do mesmo [Continente], tem povoado um rincão, que [vai] em direção ao caminho do Rio Pardo [junto] do Arroio Tamanduá, até a segunda ponte do Paratenim [Piratini], com animais vacuns e cavalares e que este Rincão terá légua e meia de comprido e uma de largo, pouco mais ou menos. Dividindo-se pelo Norte, com a sobredita referida ponte do Piratinim e um cordão de matos, sendo este de pedras, e que vai lindar nas pontas do Piratinim; pelo Sul, com o mesmo Arroio Tamanduá; pelo Leste, com a Serra dos Tapes; e pelo Oeste com as ditas pontas do Piratinim, que fecham o dito Rincão. E como as quer possuir com legítimo título: Pede a V. Exª. seja servido conceder ao Suplicante o dito Rincão por Sesmaria, debaixo das confrontações acima expressadas. E.Real Mercê”.
O pedido de Prates, no primeiro momento, recebeu o seguinte despacho: “Informe o Sr. Marechal de Campo Governador do Rio Grande, ouvindo por escrito a Câmara e o Provedor da Fazenda Real. Rio, 4 de outubro de 1794”.
Pronunciou-se a Câmara com o seguinte despacho, endereçado ao Governador: “Da sentença que se nos apresentou, extraída dos Autos da Medição a que se procedeu judicialmente em conformidade com as ordens do Ilmo. e Exmo. Sr. Vice-rei do Estado, consta estar o Suplicante povoando os campos de que trata o presente requerimento, em conseqüência da concessão de V. Sª. constante do requerimento que fizera na ocasião em que pretendeu ali entrar com seus animais, e por constar da dita sentença, que não houve oposição de terceiros àquela medição. É o que podemos informar a V. Sª. Porto Alegre, em Câmara de 7 de setembro de 1795. [Constam as seguintes assinaturas]: Antônio José Bastos – Antônio P. do Couto – José Francisco do Santos Sampaio – Domingos de Almeida Lemos Peixoto [e] José Antônio Lima”.
O parecer do Provedor da Fazenda Real: “O Suplicante fez medir e demarcar judicialmente as terras, que na apresentação retro requer por Sesmaria, o que fez certo, pela sentença anexa, da mesma demarcação. É o que posso informar a V. Sª. Porto Alegre, 15 de setembro de 1795. [Estava a assinatura de] Ignacio Ozorio”.
Recebeu por fim o “Passe Carta na forma das Ordens. Rio, 18 de novembro de 1795”.
Bem, segundo o documento firmado por Sarmento a pedido de Prates, é possível dizer que no ano de 1789 Prates era então morador da freguesia de Nossa Senhora dos Anjos, hoje cidade de Gravataí.
Vejamos agora o que nos informa Alexandre Eloy Portelli, Tenente-coronel do Real Corpo de Engenheiros, em documento passado em 3 de junho de 1799, em Porto Alegre, a pedido de Paulo Rodrigues Xavier Prates: “Atesto que tendo sido encarregado pelo Ilustríssimo e Exelentíssimo Tenente General, Governador da Capitania do Rio Grande de Sam Pedro do Sul no mês de abril do presente ano para levantar Plano das Margens, e terreno adjacente da grande Lagoa dos Patos para cuja diligência se exigiam precisamente diferentes socorros dos Fazendeiros das Margens da dita Lagoa, como de cavalhadas, canôas, e sustento para a Tropa que me escoltou. Encontrei particularmente as mais prontas providências e a mais louvável franqueza nas de Paulo Rodrigues Xavier Prates, Capitão Mór que foi da Vila de Laguna, atualmente estabelecido no Rincão denominado Cangosú que faz frente a referida Lagoa, [grifos nossos] por quanto sem querer aceitar clareza alguma para ser pago pela Real Fazenda, sustentou bastantes dias a sua custa toda a tripulação dos Canoões, e Soldados, franquiou uma Canôa própria para o trabalho provendo de palamenta [conjunto de mastros, vergas, croques, ancorotes, remos, paus de bandeira, etc., de uma embarcação pequena] todas as outras que não tinham, e se tinham estropiado desde o Porto do Rio Grande até o de sua Fazenda, e ofereceu finalmente a sua pessoa, escravos, e peões sempre que fossem precisos para o adiantamento da diligência, com cujo ajutório á adiantou consideravelmente; pois seria inevitável a demora de recorrer ao Porto do Rio Grande para novos socorros; estando entrado o tempo rigoroso do Inverno. Com semelhante conduta afiançou o referido Paulo Rodrigues, voz e crédito que tem a muitos anos nesta Capitania de ser o Vassalo mais fiel, zeloso e franco para o Serviço de Sua Majestade. Passo o referido na verdade e por me parecer de Justiça dar um autentico testemunho da sua honra e probidade lhe passei a presente por mim assinada em Porto Alegre aos três dias do mês de junho de mil setecentos e noventa e nove. Alexandre Eloy Portelli”.
Antes de examinarmos a partir de quando Prates se tornou sesmeiro da Sesmaria da Feitoria, vejamos de onde veio e quem era Paulo Rodrigues Xavier Prates: era filho de João Rodrigues Prates, capitão-mór da Vila de Laguna de 1752 a 1767, ano em que faleceu. Com a morte do pai, Paulo Xavier Prates requereu e obteve o posto que seu pai ocupara por longos anos por ordem do “General de Artilharia, Vice Rey, e Capitão General de Mar, e Serra do Estado do Brazil”, aos 13 dias do mês de julho do ano de 1767.
Prates esteve no cargo até 1788, ano em que pediu baixa e permissão para se retirar “[...] para o Continente do Rio Grande”, onde o encontramos como “morador da Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos [da Aldeia, atual cidade de Gravataí]”.
Considerando o que nos informou Sarmento – em 23 de fevereiro de 1789 – e Portelli – em três de junho de 1799 –, podemos afirmar que o local onde Prates esteve instalado era conhecido como “Rincão de Cangosú” e não “Estância”, ou “Sesmaria da Feitoria”. Podemos dizer também, que é bem provável que Alberto Coelho da Cunha, ao afirmar que Paulo Rodrigues Xavier Prates foi o fundador desta estância e que, depois de falecido, ela foi partilhada entre seus herdeiros, tenha confundido o nome do fundador da Real Feitoria do Linho-cânhamo, o Reverendo Francisco Rodrigues Xavier Prates, com o de Paulo Rodrigues Xavier Prates. Isto, no que diz respeito ao nome do Fundador; pois, quanto ao primeiro sesmeiro do “Rincão de Cangosú”, tampouco foi Paulo Rodrigues Xavier Prates, como veremos a seguir.

SESMARIA DA FEITORIA OU, O “RINCÃO DE CANGUAÇU”
Esta sesmaria foi concedida por primeira vez e com o nome de Rincão de Canguaçu, no ano de 1789, a Santos da Costa Teles, como pode se ver no requerimento feito por este: “Ilmo. Exmo. Sr./Diz Santos da Costa Teles, domiciliado e casado no Continente do Sul, que não tem terras em que se estabeleça para a cultura e criação de animais em atitude própria, de seus sucessores, herdeiros e política dos Reais Dízimos. E como entre a Serra que vem do Erval e a Lagoa dos Patos arminhos [O pato-arminho ou cisne-de-pescoço-preto, “originário da Patagônia, na Argentina, migra do inverno gelado do extremo sul desse país para o frio gaúcho, menos rigoroso” (Andréia Schimumeck, 2003)] se acha um Rincão denominado de Canguaçu, em linha meridional e vertical fazendo cruzada do travessão Nordeste e Sudeste entre os dois rios das Pedras e dos Correntes, que nas suas águas e grossas restingas de matos, da parte do Nordeste media a Fazenda de São Lourenço; e ao Sudeste a Fazenda do Serrito, ambas do Capitão-mor, Manoel Bento da Rocha, confrontando de um e do outro lado dos ditos Rios, com o Rincão de Canguaçu, que pede o Suplicante, cujo campo fôra de comprido até a orelha da Serra, três léguas, ou o que na verdade se achar; e de largo, légua e meia em partes, pouco mais ou menos. Cujos Rios, correndo ao Oeste, desaguam na Lagoa dentro do Canguaçu; e pelo rumo de Leste e o das Pedras do Salso na Lagoa dos Patos, caminhos pelo rumo de Sueste, ficando entre o meio dos dois a corrida, ou veio, que passa de uma Lagoa a outra, sendo neste meio o Porto geral da Fazenda que pede o Suplicante, na encosta do Canguaçu. E, porque se acham devolutas aquelas terras com as confrontações declaradas, tem o Suplicante possibilidades para as cultivar com lavoura e criação de animais na forma que se pratica, e não podendo fazer sem justo título de Sesmaria: Pede a V. Exª. lhe faça mercê de conceder o referido Rincão e terras dele, com as confrontações expressadas, por Sesmaria, para o Suplicante e seus sucessores na forma dos Forais e Leis das mesmas Sesmarias. E. Real Mercê”.
O despacho do Rio de Janeiro em 7 de maio de 1789: “Informe a Câmara e o Provedor da Fazenda Real”.
A Câmara: “É certo o que o Suplicante alega em seu requerimento, as ditas terras se acham devolutas. Vossa Exª. mandará o que for servido. Porto Alegre, em Câmara de 18 de julho de 1789”. Seguem as assinaturas de José Roiz de Figueiredo, Boaventura de Oliveira, Antônio Roiz da Silva, Antônio de Barros e Manoel Luiz Roiz.
O Provedor da Fazenda Real: “As terras de que faz menção a petição retro, estão devolutas. É o que posso informar a V. Exª., que mandará o que for servido. Porto Alegre, 20 de julho de 1789”. Informe feito por Ignacio Ozorio.
O Vice-rei: “Passe Carta na forma das Ordens. Rio, 20 de novembro de 1789”.
Não sabemos quando Santos da Costa Teles transferiu a posse desta Sesmaria a Paulo Rodrigues Xavier Prates. Porém, que a vendeu a Prates é certo, pois quem nos fala sobre esta transação é o próprio filho de Paulo Prates, quando “Diz Antônio José Marques, natural do Continente do Rio Grande de São Pedro, que no mesmo há um Rincão denominado o Canguassú, do qual tem Sesmaria Paulo Rodrigues Xavier Prates, dividido pelo Este com a Serra do Erval; pelo Norte, com um Arroio grande; pelo Sul, com o Arroio Correntes, que ambos deságuam na Lagoa dos Patos-arminhos; pelo Leste se divide com a mesma Lagoa. E que nele há sobras devolutas, que têm légua e meia de testada e duas de fundo, e porque o Suplicante tem possibilidades suficientes para as cultivar, e não tem lugar onde se estabeleça; portanto: Pede a V. Alteza, seja servido conceder ao Suplicante, para menos e não para mais, em nome de S. Majestade, ficando inteirado o dito Paulo Roiz Xavier Prates. E. Real Mercê”.
Os trâmites: “Informe O Sr. Marechal de Campo, Governador do Rio Grande, ouvindo por escrito a Câmara e o Provedor da Fazenda Real. Rio, 22 de janeiro de 1794. [Rubrica]”.
As providências do Governador: “Informe a Câmara e o Escrivão que serve Intendente da Marinha. Porto Alegre, 27 de novembro de 1800”.
Informe da Câmara: “Da Sentença extraída do processo de medição, que requereu o Capitão-mor Paulo Rodrigues Xavier Prates, pai do Suplicante, que com esta se nos apresentou, consta dos Termos da Medição feita no Rincão de que o Suplicante requer as sobras, haver três quartos de légua; que é o que legitimamente se lhe pode conferir, por ser o que na averiguação daquela Medição só haver de sobras. É o que podemos informar a V. Exª. Porto Alegre, em Câmara de 15 de abril de 1801. José A. de Carvalho – Domingos Borges Freire – José A. Ribeiro Guimarães – João Roiz Vianna”.
O Intendente da Marinha: “Segundo a informação que dá a Câmara do Continente e a Sentença de Medição anexa que o Suplicante apresenta de sobras, que há nos campos que seu pai fez [compra] a Santos da Costa Teles, não encontro dúvida alguma na pretensão do Suplicante às mesmas sobras, máxime quando foram estas compreendidas na referida Compra; lembrando-me haver informado ao Escrivão das Sesmarias, Domingos José Marques Fernandes, outro igual requerimento, segundo minha lembrança, na data deste em que pretendiam as mesmas sobras. É o que tenho a informar a V. Exª. sobre este. Porto Alegre, 16 de abril de 1801. Simeão E. Gomes da Fonseca”.
A resposta do Governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara ao Conde de Rezende: “Na inteligência de que é o mesmo terreno, ou sobras dele, que pretendem Antônio José Marques, suplicante mencionado no requerimento junto a Domingos José Marques Fernandes por via de outro semelhante, em que me reportei à informação da Câmara, encontro a diferença de ser o requerimento do primeiro despachado por V. Exª. na data de 22 de janeiro de 1794, e o do segundo, na de 26 de fevereiro do presente ano. Sendo tudo quanto ao dito respeito posso e devo informar a V. Exª. cuja Excelentíssima pessoa, Guarde Deus muitos anos. Porto Alegre, 19 de abril de 1801”.
E tudo acabou no “Passe Carta de Sesmaria na forma das Reais Ordens. Rio, 7 de agosto de 1801”.
Como se pode ver, Paulo Rodrigues Xavier Prates não foi o primeiro sesmeiro desta Sesmaria.


Referências

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O desbravamento do Sul e a ocupação castelhana. Pelotas: Editora Universitária/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F. MARCOLLA, V. O processo de urbanização de Pelotas e a Fazenda do Arroio Moreira. Pelotas: Editora Universitária/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V.
O povoamento de Pelotas. vol. 1 e 2. Pelotas, 2010. (no prelo).