sábado, 17 de julho de 2010

O POVOAMENTO DE PELOTAS (6)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla


Sesmaria de Santana – Foi concedida com o nome de LAGOA MIRIM, como veremos no decorrer do trabalho.

UMA BREVE HISTÓRIA DO FALECIDO
JOÃO ANTONIO PEREIRA DE LEMOS

Na expectativa de acrescentarmos carne, luz e ação nos nomes de pessoas que fizeram parte da nossa história, como é o caso do “falecido João Antonio Pereira Lemos”, foi que constatamos que este pertencia ao 3º Regimento de Infantaria da Linha da Cidade do Rio de Janeiro, onde teve a “honra de servir a V[ossa] A[lteza] R[eal] desde a sua primeira praça de trinta e um de outubro de 1773”.
Tendo se destacado no cumprimento de suas obrigações, logo foi promovido “pelos seus chefes a posto maiores”, daí o encontrarmos, no ano de 1774, segundo Atestado passado por Camilo Maria Sonnelet (Cavaleiro Professo na Ordem Militar de São Bento Aviz, e Coronel do Terceiro Regimento de Infantaria de Linha do Rio de Janeiro...) no qual informa que: “[...] tendo se movido a Guerra do Sul [1763-1776] no Continente do Rio Grande entre a Nação Portuguesa, e a Hespanhola, e sendo escolhidas três Companhias do Regimento de Moura, atualmente o terceiro desta Praça [Rio de Janeiro] que marcharam desta Cidade para aquele Continente antes do resto do mesmo Regimento, e mais Tropas, que se seguiram com estas três ditas Companhias, marchou João Antonio Pereira Lemos, Ajudante da Cirurgia, que era fazendo vezes de Cirurgião Mor daquele Corpo por uma particular escolha em atenção a seus préstimos e bons conhecimentos da sua Arte, cujo exercício conservou por cinco anos depois de chegar àquele Continente, enquanto estas Companhias, e a primeira de Cavalaria do Esquadrão que nesta Cidade faz a Guarda aos Excelentíssimos Senhores Vice Reys da qual eu era Capitão, se conservaram abarracadas juntas nos Campos denominados de José [Vieira] da Cunha, onde observei, e foi igualmente constante que ele se prestava as suas obrigações com muito zelo e inteligência não só aplicando remédios, mas também suprindo a falta deles com seu trabalho e diligências por [ali] não haver Botica. No dia da ação da tomada daquele Continente ele acompanhou as duas Companhias de Granadeiros de Moura, e Bragança, que tomaram o Forte da Trindade, passando o Rio e as mesmas jangadas, e indo igualmente com elas exposto ao fogo das Baterias inimigas, havendo-se ali, depois da tomada com muito zelo e caridade a respeito dos feridos, não só das mencionadas Companhias mas também dos Prisioneiros Hespanhóis aos quais acompanhou para o Hospital que se havia estabelecido na parte do Norte. E por ser verdade [...]. Rio de Janeiro, doze de julho de mil oitocentos e três. [...]”.
Depois da retomada do território, Lemos permaneceu no Continente e “sendo conveniente ao Real Serviço de Sua Majestade prover os Postos vagos do Regimento de Auxiliares da Cavalaria do Rio Grande de São Pedro, sendo um deles o do Tenente da Companhia do Distrito do Povo Novo, e atendendo a concorrerem as circunstâncias necessárias na pessoa de João Antonio Pereira de Lemos para o exercitar: hei por bem nomear, e prover ao dito [...] de que foi Coronel, Francisco Barreto Pereira Pinto [...] a treze de maio de 1784. Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara [...]”.
Poucos anos depois, e ainda Tenente da Companhia do Distrito do Povo Novo, “Dom José de Castro, Conde de Rezende, do Conselho de Sua Majestade, Marechal de Campo dos Seus Exércitos, Vice Rey e Capitão General do Mar, e Terra do Estado do Brazil [...]. Faço saber aos que esta minha Carta Patente verem que sendo conveniente [...] prover o Posto de Capitão da Companhia do Distrito de Povo Novo do Regimento de [...] de que é Coronel Carlos José da Costa e Silva, vago pela reforma de Antonio Mendes de Oliveira, que o era, e atendendo a concorrerem as circunstâncias necessárias em João Antonio Pereira de Lemos para o exercitar [...]: hei por bem nomear e prover como por esta o faço [...] aos vinte e quatro de Outubro de mil setecentos e noventa e oito [...]”.
Vejamos, segundo a “Atestação” passada por Manoel Marques de Souza, “Coronel da Legião da guarnição do Continente de Rio Grande [...], e Comandante atual da Fronteira [...]” o que aconteceu com Antonio Pereira de Lemos “no ano de mil setecentos e noventa e sete quando os Hespanhóis ameaçavam esta Fronteira puxando as Tropas, e ingressando as suas Guardas, sendo, então, Tenente, esteve do Acampamento da estiva do Albardão ano e meio Comandando a sua Companhia por impedimento do Capitão, e na mesma ocasião serviu de Ajudante um ano fazendo de todo o Destacamento que ali estava, executando com muita prontidão, e exerção [esforço] as obrigações de que foi encarregado na senda da Guerra, estando dois meses dentro do Distrito para executar todas as Ordens que ali se dirigiam, marchou em dias de Novembro de mil oitocentos e um com a sua Companhia para a Fronteira do Albardão, e a três de Dezembro teve Ordem do Brigadeiro Governador Interino Francisco João Roscio de marchar com a mesma Companhia para a Fronteira do Rio Jaguarão, adonde se aproximava o Exército inimigo de mais de três mil homens com um Parque de Campanha volante, cuja marcha de trinta e tantas légoas, tendo a passagem de nado do passo do Liscano, fez muito aplicada, e com regularidade para a conservação dos Cavalos, até que se incorporou à Tropa que estava acampada na margem do dito Jaguarão, fazendo frente ao inimigo adonde continuou a fazer o serviço próprio da Campanha dois meses, até que se retirou para o seu Distrito pela declaração da Paz. [...]. Rio Grande vinte e dois de setembro de mil oitocentos e dois. [...]”.
Antes de explicarmos as razões de trazer esta breve história do falecido João Antonio Pereira de Lemos às notas à margem da história da Sesmaria Santana, ouçamos o depoimento deste com relação ao acontecimento com a sua Provisão de Capitão: “[...] e porque tendo mandado a sua original Patente no ano de 1799 para ser confirmada por V[ossa] A[lteza] R[eal] e infelizmente se perdeu em um Navio que foi apresado pelos Franceses, cuja infelicidade não deve servir de desgosto ao Suplicante de ser privado da Honra do Posto que ocupa, por isso suplica humildemente a V. A. R. que atendendo aos ditos documentos que protesta a ajuntar aos originais sendo preciso lhe faça a graça de o confirmar no referido posto. – Pede a V. A. R. por efeito de sua Real Grandeza lhe faz mercê de mandar-lhe passar carta de confirmação do dito posto”.
A suplica de Lemos foi expedida em 25 de outubro de 1804, depois de ter o parecer favorável do Governador do Rio Grande de São Pedro.

Sesmaria de Santana

Ao que tudo indica, esta Sesmaria foi concedida no ano de 1791 e confirmada (registrada) no ano de 1794, em nome de três pessoas: Felix da Costa Furtado Mendonça, Hipólito José da Costa Pereira (filho de Felix) e o irmão de Felix, Doutor Pedro Pereira Fernandes de Mesquita.
O topônimo de referência é a Lagoa Mirim. Daí não entendermos nem julgarmos relevante averiguar porque cargas d’água esta Sesmaria tomou a denominação de Sesmaria Santana. É possível que este nome, Santana, seja uma contração de Santa Ana, caso naquele local tivesse – o que era comum naquela época – um oratório dedicado a essa Santa. Bem, isto por ora é irrelevante.
Importante mesmo é saber o que “Diz o Bacharel Hipólito José da Costa Pereira, chegado da América Septentrional, da Comissão a que Vossa Alteza Real houve por bem enviá-lo, que teve por notícia, que as suas fazendas e terras, sitas na Capitania do Rio Grande do Sul, e de que está de posse seu pai Felix da Costa Furtado de Mendonça, e seu tio o Doutor Pedro Pereira Fernandes de Mesquita, se achavam ameaçadas por pessoas que, em razão da falta de clarezas de títulos, que há nas terras de todo aquele Continente, poderiam perturbar as posses das mesmas fazendas: e porque na distância em que o Suplicante se acha lhe é impossível acertar a veracidade deste boato, e examinar, com a prontidão, que exige a necessidade do caso as circunstâncias das Sesmarias, e papéis relativos às mesmas fazendas, pois se acha ainda empregado no serviço de Vossa Alteza Real, a que primeiro que tudo deve atender, P[ede] a Vossa Alteza Real seja servido dignar-se, por Sua Real Clemência, a Ordenar ao Governador daquela Capitania que mande imediatamente examinar se as fazendas, que o referido pai do Suplicante, Felix da Costa Furtado de Mendonça, e seu tio o Doutor Pedro Pereira Fernandes de Mesquita possuem tem Sesmarias tais que possam manter-lhes a posse não perturbada; e no caso de terem sido esbulhados dela os torne a apossar dando-lhes todas as clarezas, atestações ou auxílios necessário, e que em Direito se houverem mister: e que outrossim o dito Governador preste às ditas fazendas e seus possuidores, Felix da Costa Furtado de Mendonça e Doutor Pedro Pereira Fernandes de Mesquita, toda a proteção que for possível em razão de se achar o Suplicante empregado no Serviço de Vossa Alteza Real; dando igualmente conta à Secretaria de Estado de o ser assim executado. E[spera] R[eal] M[ercê] – Hipólito José da Costa Pereira”.
A agilidade que a emperrada burocracia da Corte Portuguesa deu ao pedido do Bacharel Hipólito José da Costa Pereira – feito em abril de 1801 – foi tamanha que nos surpreendeu.
A pessoa, e não as “pessoas” que ameaçavam as “fazendas e terra” da família e do próprio Hipólito José da Costa Pereira “em razão da falta de clarezas de títulos que [havia] nas terras de todo aquele Continente [do Rio Grande]” e que, por tal ameaça, Hipólito suplicou a “Vossa Alteza Real toda a proteção que for possível”, era o nosso falecido capitão João Antonio Pereira de Lemos.
Também disse a Vossa Alteza que ele “morador na Capitania do Rio Grande de S. Pedro do Sul, que fazendo medir e demarcar judicialmente uma sorte de terras, que possui na mesma Capitania, nas margens do Norte do Rio de São Gonçalo, com citação de todos os Ereos [lindeiro] confinantes, e todas as mais solenidades de Direito, e por isso lhe sendo julgada por sentença, e por ela confirmada, a posse que por ele, Suplicante, e seus antecessores tinham nas mesmas terras de mais de cincoenta anos, cuja medição foi praticada no mês de Março de 1802; Estando assim o Suplicante gozando da mansa e pacífica posse de seu Prédio, com todos os frutos e rendimentos [...]”.
Interrompemos o arrazoado de Lemos, no intuito de lembrar ao leitor que as primeiras apropriações realizadas no Continente, conforme “Mapa [enviado pelo comandante Diogo Osório Cardoso] das fazendas povoadas de gado no Rio Grande de São Pedro até esta data [13.03.1741], das partes norte e sul, incluindo os nomes dos proprietários e as quantidades de gado”, embora ocupadas presumimos que a partir de Silva Paes (1737) só foram concedidas e registradas por Sesmarias nos anos de 1752 a 1756: portanto, o dito do capitão João Antonio Pereira de Lemos de que, “a posse que por ele, Suplicante, e seus antecessores tinham nas mesmas terras de mais de cincoenta anos”, é possível de veracidade, ainda que a história oficial deles não lembre ou fale; pois eram apenas colonos, como se verá no decorrer da petição:
“[...] aconteceu no dia 15 de junho do dito ano de reger o Governador Interino que então servia, o Brigadeiro Francisco João Roscio, um Ofício do Juiz Ordinário, que tinha presidido e julgado a dita medição, em que lhe ordenava que atendendo à representação que lhe havia feito Hipólito José da Costa Pereira, com uma ordem que lhe apresentava de Vossa Alteza Real para se lhe tomar debaixo da Real proteção as Fazendas que o mesmo ali possuía! por si e por seu Pai e Tio, e consta lhe ter sido compreendidas na mesma do Suplicante pelas das terras daquele, e compreendidas na referida ordem! Houve-se o Dr. Juiz aquela mesma do Suplicante por nenhum, como que se nunca existisse, mandando desfazer os autos que tinha feito processar e que ordenava como ordenado tinha ao Coronel Comandante daquele Distrito assim o fizesse cumprir. Recebendo aquele Juiz o dito Ofício em sete de julho do dito ano, no lugar denominado o Chasqueiro distante mais de 80 Léguas de Porto Alegre, onde se achava o dito Governador, duvidou cumprir e tentaria muito, o que lhe ordenava o Governador, respondendo-lhe que para poder dar execução ao que lhe determinava lhe deveria mandar por cópia a ordem a que se reportava para a vista da mesma deferir nos autos e com satisfação dar parecer. A isto, nada respondeu aquele Juiz ao dito Governador, e passados alguns tempos foi o Suplicante desapossado das ditas terras por aquele Coronel, em virtude do impresso [Ordem] que lhe dirigiu aquele Governador, vendo-se assim o Suplicante espoliado da posse e corrido das suas terras por meio extrajudicial e quase impraticável e a requerimento de um suposto ereo, como na verdade se quer supor o dito Hipólito José da Costa Pereira que, apesar de ter apresentado uma Sesmaria de terras que confinam com o Suplicante, estas contudo sempre foram conhecidas [como] ser do Tio deste, o Doutor Pedro Pires Fernandes de Mesquita, que as houve por compra feita ao seu primeiro [ocupante] Colono, a cujo Ereo fez o Suplicante citar quando da medição e ainda mesmo [ilegível] o dito José da Costa Pereira fosse [o] verdadeiro Senhor das terras que compreende a Sesmaria, assim mesmo nunca poderiam prejudicarem o Suplicante por serem divididas por uma grande Ribeira e nem o Suplicante se oporia desconhecer por Ereo por não ter constado, naquela Capitania, venda pública ou particular, ao dito Suposto Ereo [lindeiro], nem Registro da Sesmaria o beneficia quando naquela ação apresentava”.


“Animado o Suplicante de todos estes fundamentos de Direito e Justiça passou a Porto Alegre, apesar da distância de 60 léguas a expor pessoalmente àquele Governador a injustiça que se lhe fazia com tal procedimento, mas sem efeito a diligência, porque o dito Governador, talvez por mal informado do direito do Suplicante, e por falta de exame pessoal no lugar contencioso, ocupou em entender mal a ordem a que se ligava e não deu atenção ao Suplicante, antes o insultou e intimidou com palavras indecentes, acrescentando [ainda] o mandar por logo o Suplicante debaixo de prisão com mensagem [aviso] por toda a Vila [de Porto Alegre], com a obrigação de se lhe apresentar todos os dias, de cuja prisão foi aliviado pelo atual Governador [Paulo José da Silva Gama, que embora nomeado em outubro de 1801 só foi empossado em janeiro de 1803], que de nada mais tomou conhecimento, por não ser praticado no seu tempo. E porque Augusto Senhor a ordem que se passou por este Régio Tribunal a favor daquele Hipólito José da Costa em 31 de Agosto de 1801, não se funda à sua inteligência se não em intenções Justas e Santas ela não deu Augusto Senhor aquele Governador para prejudicar o Suplicante, nem para julgar [ilegível] o privar a execução de uma sentença em Julgado e desfazer os Autos donde [ilegível]. Por isso o Suplicante move a mais alta Piedade de Vossa Alteza Real [e] se digne mandar que o atual Governador ponha o Suplicante na posse em que se achava, tanto por si como por Juiz antepassados e medida judicial, ficando o meio ordinário ao sucedido para poder usar quando o pense lhe compete. Pede a Vossa Alteza Real se digne atender o Suplicante e por tudo Espera Real Mercê”.
A petição de João Antonio Pereira de Lemos foi assinada por seu procurador, Pedro Gonçalves das Neves.
Mesmo sem sabermos o resultado do litígio entre as partes – ou, melhor dizendo, litígio provocado por influência de uma das partes: Hipólito José da Costa e seus parentes – acreditamos que o capitão João Antonio Pereira de Lemos tenha recuperado a posse da sorte de terras que possuía “nas margens do Norte do Rio de São Gonçalo”.
Por outro lado, as razões e explanações feitas pelas partes nos permitem algumas especulações: quando Hipólito José da Costa Pereira diz que suas fazendas e terras, sitas na capitania do Rio Grande do Sul, se achavam ameaçadas por pessoas em razão da falta de clareza de títulos, que havia nas terras de todo o Continente, nos leva a crer que tal Sesmaria, a de Santana, mesmo tendo sido concedida, registrada e confirmada entre os anos de 1791 e 1794, carregava com ela uma história não documentada de ocupação anterior, especulação esta reforçada pela petição de Lemos, quando, a certa altura, nos informa que o doutor Pedro Pires Fernandes de Mesquita “as houve por compra feita ao seu primeiro [ocupante] Colono cujo Ereo [lindeiro] fez o Suplicante [Lemos] citar quando da medição”.
Considerando também o dito pelo Capitão, de que ele “e seus antecessores tinham nas mesmas terras mais de cincoenta anos” a posse e descontarmos do ano da petição de Lemos, 1802, apenas os 50 anos, voltaremos ao ano de 1750.
Dissemos anteriormente que as primeiras Sesmarias do Continente foram concedidas, registradas e confirmadas entre os anos de 1752 e 1756 e que estas eram originárias das fazendas conhecidas e recenseadas pelo 3º comandante militar do Rio Grande de São Pedro, Diogo Osório Cardoso (1741-1752), conforme o “Mapa das Fazendas Povoadas de gados no Rio Grande de S. Pedro, até hoje 13 de outubro de 1741” enviado por este a Lisboa naquele período, em função disso e por não termos localizado no Arquivo Público Mineiro nenhuma fazenda conhecida ou sesmaria concedida do lado de cá do Canal de São Gonçalo, é possível aventarmos a hipótese de que o território que deu origem à cidade de Pelotas, pelo menos desde 1750, já estava ocupado por colonos e que esses, é bem provável, fossem parte dos primeiros Casais trazidos dos Açores para povoarem o Continente.
E, em se tratando de colonos, por suposto de pouca instrução e difícil acesso aos órgãos governamentais competentes, não trataram de pedir datas de campo, sortes de terra ou por sesmaria as terras que ocupavam. Vai daí que tanto o Dr. Pedro Pereira Fernandes de Mesquita quanto o capitão João Antonio Pereira de Lemos, compraram do tal “Colono” a posse de fato e não a de direito confirmada.
Supomos também que o pai de Hipólito, Felix da Costa Furtado e seu tio, o doutor Pedro Pereira Fernandes de Mesquita e ainda o próprio Hipólito trataram de legalizar as posses bem antes do capitão Lemos, que sé veio a requerer e medir a “sorte de terras” que “houve por compra feita ao seu primeiro ocupante Colono” no ano de 1800/1801, o que acabou assustando os parentes de Hipólito.
De qualquer forma e mesmo assim não justificaria o abuso de poder empregado pelo governador interino, Brigadeiro Francisco João Roscio, já que as terras de Lemos eram “divididas por uma grande Ribeira”, o que nem Roscio e nem mesmo Paulo da Silva Gama levaram em consideração, pois se tratava de dar satisfação ao pedido de Vossa Alteza Real.
Finalizando, por ora, queremos lembrar ao leitor que a posse de direito de uma sesmaria, seguia um certo ritual, a grosso modo com o seguinte trâmite: depois da terra ocupada, ou arrematada em praça pública ou mesmo concedida por autoridade competente, era levada a registro. Depois, então, de registrada tinha obrigatoriamente de ser confirmada por Vossa Alteza Real.


Dizem que Felix da Costa Furtado de Mendonça, pai de José Hipólito da Costa Pereira, recebeu sua Carta de Sesmaria em 10 de março de 1794. E que esta lhe deu o Conde de Rezende, como recompensa por seus serviços na guerra. Não sabemos de onde saiu tal explicação. E não é esta a primeira vez que tal justificativa aparece, quando se trata da história das Sesmarias de Pelotas. Mas, mitos à parte, vejamos o histórico e o procedimento que o Alferes Felix, seu cunhado, o padre-doutor Pedro Pereira Fernandes de Mesquita e o filho do alferes, Hipólito José da Costa Pereira, tiveram na concessão de suas Sesmarias.
Qualquer, que fosse a ordem escolhida para apresentá-las, não faria a menor diferença; pois, as três foram concedidas no mesmo dia depois de terem passado pelo mesmo rito e obtendo os mesmos pareceres; variando apenas o do Governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, por estilo, quando do parecer final endereçado ao Conde de Rezende.
A novidade entre elas, caso assim entendam, fica por conta de aparecer em outra o nome de seu filho, Hipólito José da Costa Pereira, como sesmeiro. Algo que a História de Pelotas não registrou, até agora.
Comecemos pela do Alferes: “Ilmo. Exmo. Sr. Vice Rey/ Diz Felix da Costa Furtado de Mendonça, morador na Vila de São Pedro do Rio Grande, que ele está possuindo uns campos no Distrito da mesma Vila na parte Setentrional do Sangradouro da Lagoa Mirim, com duas léguas de comprido e uma de largo pouco mais ou menos, cujos campos partem pelo Norte com Alexandre da Silva Baldez e Antônio Teixeira Corisco; pelo Oes-sudueste, com o cume de uns Cerros que o divide dos Campos do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira; e pelo Les-nordeste, com o Doutor Pedro Pereira Fernandes de Mesquita. E porque os quer possuir com melhor título, Pede a V. Exª. seja servido mandar-lhe passar Carta de Sesmaria. E. Real Mercê”.

O ritual e seus pareceres:

O Vice-rei: “Informe o Sr. Governador do Rio Grande, ouvindo por escrito a Câmara e o Provedor da Fazenda Real. Rio, 17 de outubro de 1791”.
O procedimento do Vice-rei, o Conde de Rezende, mostra não ter havido nem uma dádiva ou favorecimento excepcional, quando do pedido de Felix. Pois tal despacho foi o mesmo antes e depois do pedido do Alferes, em todos os processos de concessão de sesmarias.
O Governador: “Informe o Senado da Câmara e o Provedor da Fazenda Real do Continente do Rio Grande. Povo de Santo Ângelo, 18 de junho de 1792”.
O Senado da Câmara: “Ilmo. Sr. Marechal Governador/ Por informação do Capitão José Joaquim de Oliveira, nos consta ser certo o que o Suplicante alega no seu requerimento. É o que podemos informar a V. Senhoria. Porto Alegre em Câmara de 22 de setembro de 1792. Boaventura F. de Oliveira – Domingos Velho da Silva – José A. Duarte – José Roiz de Figueiredo”.
O Provedor da Fazenda Real: “O Suplicante fez certo [provou] nesta Provedoria estar de posse dos Campos de que faz menção a Petição retro, há bastante anos. É o que posso informar a Vossa Senhoria. Porto Alegre, 10 de novembro de 1792. Ignacio Ozorio”.
Resposta do Governador ao Vice-rei, Conde de Rezende: “É certo que o Suplicante mencionado no requerimento anexo, Felix da Costa Furtado de Mendonça, se acha continuamente de posse do terreno que pretende, e consequentemente nos termos de que V. Exª., sendo do seu agrado, seja servido conceder lhe por Sesmaria não duas léguas que o mesmo Suplicante atribui ao próprio terreno, mas légua e meia, que é o que abrange as confrontações nele expressadas. Sendo tudo quanto ao dito conceito, posso e devo informar a V. Exª. cuja Exma. Pessoa Guarde Deus muitos anos. Rio Grande, 7 de janeiro de 1794.
O “Passe Carta na forma das Ordens, regulando-se pela informação do Marechal Governador a respeito da extensão do terreno. Rio, 11 de maio de 1794.
Vamos transcrever agora a solicitação do padre-doutor e os trâmites em torno do pedido: “Ilmo. e Exmo. Sr. Vice-Rey/ Diz o Doutor Pedro Pereira Fernandes de Mesquita, Presbítero Secular, morador na Vila de São Pedro do Rio Grande, que ele está possuindo um terreno no Distrito da mesma Vila, na parte Septentrional do Sangradouro da Mirim, que terá duas milhas de comprido e uma de largo pouco mais ou menos. Cujo terreno parte pelo Nordeste com Alexandre da Silva Baldez, e o divide o Arroio de São Tomé; pelo Oes-sudeste com Felix da Costa, e pelo Sul e Sudoeste, com o Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, servindo de divisa um Arroio. E porque o quer possuir com melhor título: Pede a V. Exª., seja servido mandar-lhe passar Carta de Sesmaria. Espera Real Mercê. [Rubrica]”.
O Vice-rei: “Informe o Sr. Governador do Rio Grande, ouvindo por escrito a Câmara e o Provedor da Fazenda Real. Rio, 17 de outubro de 1791”.
O Governador: “Informe o Senado da Câmara e o Provedor da Fazenda Real do Rio Grande. Povo de Santo Ângelo, 18 de junho de 1792. [Rubrica]”.
O Senado da Câmara: “Por informação do Capitão José Joaquim de Oliveira, nos consta ser certo o que o Suplicante alega no seu requerimento. É o que podemos informar a V. Sª. Porto Alegre, em Câmara de 22 de setembro de 1792. Boaventura F. de Oliveira – Domingos Velho da Silva – José A. Duarte – José Rodrigues de Figueiredo”.
O Provedor da Fazenda Real, Ignacio Ozorio: “O requerido Suplicante, fez certo [provou] nesta Provedoria estar há anos de posse dos Campos contemplados na Petição retro. É o que posso informar a V. Sª. Porto Alegre, 10 de novembro de 1792”.
Resposta do Governador ao Vice-rei: “O Reverendo Doutor Pedro Pereira Fernandes de Mesquita, suplicante mencionado no Requerimento supra, acha-se legitimamente de posse do terreno que pede a V. Exª. Seja Servido conceder-lhe por Sesmaria. E para o que eu me persuado, não haver embaraço algum, sendo tudo quanto ao dito respeito posso e devo informar a V. Exª., cuja pessoa Guarde Deus muitos anos. Rio Grande, 6 de janeiro de 1794. Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara”.
O “Passe Carta na forma das Ordens. Rio, 11 de maio de 1794. [Rubrica]”.
E, por fim, a Sesmaria de Hipólito José da Costa Pereira: “Ilmo. Exmo. Sr. Vice Rey/Diz Hipolyto José da Costa Pereira, morador na Vila de São Pedro do Rio Grande, que ele está possuindo um Rincão no Distrito da Mesma Vila na parte Septentrional do Sangradouro da Lagoa Mirim, que terá uma légua de frente e três de fundo, cujo Rincão parte pelo Nordeste e Leste com José da Silva Lumiar, dividido com um Arroio que nasce na Serra; pela de Oeste, com Antonio Teixeira Corisco; pela do Sul, com Manoel Moreira de Carvalho, dividindo-os um Arroio, que nasce da mesma Serra, e se encontra com outro da parte de José da Silva, e formam ambos o Arroio do Pestana; e pelo Norte, se divide com a Serra Geral. E porque deseja possuir com melhor título: Pede a V. Exª., seja servido mandar-lhe passar Carta de Sesmaria. E. Real Mercê”.
Como os despachos e pareceres na sua maioria foram idênticos aos de seu tio, Pedro Pereira Fernandes de Mesquita, transcreveremos apenas os do Governador e o do Vice-rei, Conde de Rezende.
O do Governador: “Não encontro embaraço algum para que V. Exª., sendo do seu agrado, seja servido conceder por Sesmaria, a Hipólito José da Costa Pereira, Suplicante mencionado no Requerimento junto, o Rincão que o mesmo pretende, e de que se acha legitimamente de posse há bastante tempo. É tudo quanto ao dito respeito posso e devo informar a V. Exª. [...] Rio Grande, 7 de janeiro de 1794”.
O “Passe Carta na forma das Ordens. Rio, 11 de maio de 1794”.

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* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, em 11, 18 e 25 de julho e 1 de agosto de 2010.
Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

PELOTAS: ORIGEM DA URBE

A. F. Monquelat
V. Marcolla


Hoje, 7 de julho, foi o dia que escolheram para Pelotas comemorar a data de seu aniversário. Significa dizer que, em certo momento de sua histórica trajetória, este dia passou a representar a data de seu nascimento. Poderia ter sido outra, o 31 de janeiro, data da Resolução que criou as freguesias de Arroio Grande, Pelotas e Canguçu, mas não; foi eleito o 7 de julho, data do Alvará, documento posterior à Resolução de 31 de janeiro de 1812.
E é a partir daí que se estabeleceu uma tradição, iniciada quem sabe em 1912, e que fez com que hoje Pelotas comemore o seu centésimo nonagésimo oitavo ano de vida como freguesia.
No entanto, esta é uma data simbólica, porque na realidade Pelotas poderia, se quisessem, comemorar os seus quase duzentos e trinta anos de existência. Ou melhor dizendo, o espaço territorial denominado Pelotas, é bem provável que tenha origem entre os anos de 1780/81. E não por causa de José Pinto Martins e sua charqueada; pois quanto a isto, prova não há. Mas sim, por ser 1781, o ano em que o governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara assentou os alicerces para o surgimento da futura cidade.
A historiografia pelotense, através de pesquisadores, historiadores e cronistas da história, por ignorar os fatos e desconhecer documentos sobre este assunto, segue atribuindo a José Pinto Martins um pioneirismo, que a este não coube. Pelotas, nos seus primórdios, já dissemos anteriormente e voltamos a repetir, é consequência do agro-pastoreio; e não de uma atividade menor, como era o ato de charquear. E nesta afirmação, incluímos também o processo de povoamento do espaço territorial, que deu origem à urbe.
Na tentativa de melhor contextualizar esta afirmação, reproduzimos aqui parte das correspondências do governador José Marcelino de Figueiredo enviadas ao Vice-rei, D. Luis de Vasconcelos e Souza, entre os meses de setembro e outubro do ano de 1779. Na de 12 de setembro “pedia o governador José Marcelino de Figueiredo ao Vice-rei que este mandasse, a pedido dos moradores da Vila do Rio Grande, formar uma nova Freguesia nos Campos da parte do Forte de São Gonçalo”. Em de 15 de outubro de 1779, aparece o seguinte teor: “[...] tendo chegado à Vila do Rio Grande muitos Casais oriundos da Praça da Colônia [do Sacramento], e ultimamente chegaram mais quarenta famílias, todas pobres e de arrasto; [e] pedem farinha e carne para comer, e eu não tenho nem para a Tropa, caso V. Excelência não a mandar ou dinheiro para compra como já tenho pedido.
Já propus a V. Exª. (e aquele numeroso povo requer) seria muito útil formar com aquela gente uma povoação, ou vila nos Campos chamados das Pelotas [grifos nossos], ou em suas imediações na forma das Ordens de S. Majestade. E é muito e muito útil, senão tanto povo perecerá, porque todo [ele] se tem juntado na Vila de São Pedro [do Rio Grande] onde se conservam sem arrumação, e sem ter [o] que comer, nem modo de viver e ainda será mais útil e necessário se forem outras Freguesias, para aumento espiritual e temporal destes Colonos, [...]” (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010, p. 53-54).
Poucos meses depois, Sebastião Francisco Bettamio datava no Rio de Janeiro, aos 19 dias do mês de janeiro de 1780, sua “Notícia particular do Continente do Rio Grande do Sul – Segundo o que vi no mesmo Continente, e notícias que nele alcancei, com as notas que me parece necessário para aumento do mesmo Continente e utilidade da Real Fazenda. [...]”.
Esta Notícia, uma espécie de Relatório, tinha o objetivo de levar ao conhecimento do Vice-rei, de quem partira a ordem, o que Bettamio vira, ouvira e sugeria quanto às providências que no Continente deveriam ser tomadas.
Ao tecer comentários sobre várias freguesias, dentre elas a Vila do Rio Grande e seus limites, nos informa Bettamio que: “Têm também fregueses da parte de fora do Sangradouro de Merim, onde chamam os Campos das Pelotas, e Arroio das Pedras”. Logo após, há uma Nota de Bettamio, na qual nos diz que “Todas as freguesias nomeadas ocupam grandes extensões de terrenos, mas a maior parte são estâncias de criações de gados”.
Diante de algumas hipóteses aventadas por Bettamio, quanto a mudar a Vila do Rio Grande para outro local, está a de que “Sendo a mudança para o campo chamado das Pelotas, onde o terreno é melhor, e tem pedra, há os descontos de ficar distante da barra mais de dez léguas; e não se poder fortificar, ou guardar pela parte do campo sem uma numerosa guarnição [...]”.
Quanto aos “campos chamados S. Gonçalo, das Pelotas ou do Serro Pelado” nos diz Bettamio, que estes “pertencem à Coroa de Portugal, segundo o Tratado de Paz, mas como não está demarcada a linha de limites, parece não ser justo ocuparem-se aquelas campanhas, nem repartirem-se a moradores sem estar concluída a linha divisória; e o tenho visto praticar pelo contrário, porque não só se tem repartido, mas até se tem vendido de um particular a outro a posse por um título que não é, nem podia ser, e tal e qual foi adquirido ainda antes da invasão que os Castelhanos fizeram no Rio Grande, em cujo tempo não pertencia à Coroa de Portugal aquele terreno. Todos dão uma boa informação dele para criações de gado, por ser de excelentes pastos, e a ideia é fazer ali povoação, e puxar para lá os moradores”. Acrescenta logo a seguir: “Confesso que não sei qual seja a política de separar os povos em distâncias tão avultadas, expondo-os aos maiores incômodos e riscos. Meu intento não é que se não utilize aquelas terras, mas antes pelo contrário digo que é justo se empreguem em criações de gados, logo que pela linha divisória ficarem nesses termos, não podendo os atuais possuidores alegar direito à posse em que estão, por serem intrusos e não poderem mostrar título legal, que lhes autorize o domínio dos ditos terrenos que intrusamente ocupam. Sou sim de parecer que, sendo lá as fazendas de gados, sejam as vivendas de seus donos dentro do recinto da Vila, como já fica declarado”.
Fizemos questão de mostrar as ponderações feitas pelo governador José Marcelino de Figueiredo, bem como as explanações e sugestões de Sebastião Francisco Bettamio ao Vice-rei D. Luiz de Vasconcelos e Souza, no intuito de mostrar que nossa afirmação quanto ao processo inicial de ocupação dos campos denominados “das Pelotas” não foi obra fortuita ou tão pouco de um único empreendimento: a charqueada de José Pinto Martins.
Dissemos, anteriormente, que os alicerces para o surgimento da cidade de Pelotas foram assentados pelo governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, e para que isso fique mais visível ao leitor, tomaremos alguns dados da petição do charqueador Antônio José de Oliveira Castro contra Antônia Margarida Teixeira de Araujo, que ajudarão a compreender a atitude do Governador quanto à Sesmaria do Monte Bonito.
Joaquim José Leite da Costa, como procurador, peticionou em nome de seu cliente, o charqueador Antônio José de Oliveira Castro a Sua Majestade, dizendo que seu constituinte era senhor e possuidor de um terreno, “compreendido em seu Título, do qual não se acha preenchido [não cumpridas as formalidades legais]”, e que tal terreno estava situado na Freguesia de São Francisco de Paula, Vila do Rio Grande; porém, Dona Antônia Margarida Teixeira de Araujo, viúva do capitão João José Teixeira de Guimarães, possuidora de uma Data de terras na margem do “Rio de São Gonçalo”, nessa mesma Freguesia, cuja Data se dividia, pelo Norte, com as sobras da “Fazenda de Monte Bonito”, e que essa Data nunca fora medida nem pelo marido, João José Teixeira de Guimarães, e tampouco por seus herdeiros. E que por isso, e a seu arbítrio, estabeleceu os limites de suas terras, pela parte do Norte, em terreno alheio.
Disse ainda o Procurador “que até o presente, nem por ele [Guimarães], nem a viúva ou seus herdeiros haviam vendido, cercado ou tapado o terreno”. E que, medida judicialmente a Fazenda de Monte Bonito, partia esta, pelo Norte, com as terras da referida viúva e que a linha divisória corria pela frente de todas as demais Datas de terras, pois na ocasião foram concedidas na mesma extensão e forma de quando foram dadas aos antepossuidores de seu marido e que somente este não ficara satisfeito com aquela medição judicial, por querer avançar sobre todos os outros dateiros que, aliás, se contentaram com os seus justos limites.
Ao leitor não familiarizado com a história destas terras (Datas), as quais deram origem à Cidade, queremos esclarecer o seguinte: o governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, tendo de assentar 20 outras famílias além das 64 assentadas na Sesmaria do Rincão Nossa Senhora da Conceição (que a historiografia local denomina de Rincão de Correntes) de propriedade de Manoel Bento da Rocha, aproveitou as sobras do “Rincão de Ignacio Antônio, que tinha cinco léguas e um terço, das quais três e meia ficaram ao dito Ignacio Antônio e o resto foi repartido pelos vinte Cazaes”.
Esta repartição, que Veiga Cabral denominou de “Explicação”, foi por ele anexada na correspondência que enviou em 12 de abril de 1781, ao Vice-rei Luiz de Vasconcelos e Souza.
Naquela oportunidade, o Governador também informou que “aos povoadores imediatos à Serra [dos Tapes], por melhor o terreno, distribuí Datas mais pequenas, que aos situados nas várzeas”.
Para maior clareza do dito pelo Governador, devemos fazer o seguinte raciocínio: dividir por 20, a área compreendida desde o Arroio Pelotas até o “Arroio de Santa Barbara”. Feito isto, teremos ideia da largura de cada uma das 20 Datas distribuídas aos 20 casais. O comprimento é que variou, de acordo com o tamanho das várzeas localizadas no fundo dos terrenos dos dateiros.
Iniciada a numeração pelo Arroio Pelotas, teremos as Datas de 1 a 12 com menor profundidade do que as de números 13 a 20, por terem menos várzeas as 12 primeiras.
Entre a 1ª e a 15ª Data, posteriormente, se instalaram as charqueadas da margem direita do Arroio Pelotas.
Da 16ª a 20ª Data, fundos para o “Sangradouro de Merin [hoje Canal de São Gonçalo]”, podemos imaginar a área da Zona Norte até o Porto.
Nos fundos da 17ª Data ficava o “Paço dos negros [Passo dos Negros]”.
E entre a 17ª e a 20ª (de Mariana Eufrásia da Silveira) nasceria o núcleo urbano da cidade de Pelotas.


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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.

Referências

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O processo de urbanização de Pelotas e a Fazenda do Arroio Moreira. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010.
MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O povoamento de Pelotas. vol. I e II. (No prelo).

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A (RE)FUNDAÇÃO DA FREGUESIA DE PELOTAS*



Pesquisa em novas fontes desvela o processo de urbanização
de uma cidade que está próxima de completar 200 anos.

Luís Rubira**

Porto Alegre, 15 de outubro de 1779. O governador José Marcelino de Figueiredo escreve uma carta ao Vice-Rei do Brasil, na qual narra uma situação calamitosa que vem enfrentando: “tendo chegado à Vila do Rio Grande muitos Casais oriundos da Praça da Colônia [do Sacramento], e ultimamente chegaram mais quarenta famílias, todos pobres e de arrasto; pedem farinha e carne para comer, e eu não tenho nem para a Tropa, caso V. Ex.a não a mandar, ou dinheiro para comprá-la, como já tenho pedido”. Buscando há algum tempo uma solução para o problema, ele enfatiza: “Já propus a V. Ex.a (e aquele numeroso povo requer) seria muito útil formar com aquela gente uma povoação, ou vila nos Campos chamados das Pelotas”. O grifo, aqui, não é do governador da Província, mas foi colocado propositalmente por Adão Monquelat e Valdinei Marcolla no recém-lançado livro O processo de urbanização de Pelotas e a fazenda do Arroio Moreira.
O pesquisador Adão Monquelat (livreiro que descobriu em Montevidéu o romance A divina pastora, desaparecido durante 145 anos, reeditado pela RBS em 1992), vem sustentar uma dupla tese, amplamente apoiada em anais e outros documentos recolhidos ao longo de anos em arquivos nacionais e estrangeiros. Em primeiro lugar, defende que antes de ser chamada de Freguesia de São Francisco de Paula, o exato lugar onde ocorreu a urbanização da cidade era justamente conhecido como Pelotas; e, em segundo, que o processo deu-se na porção de terras pertencentes ao capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos, por arrendamento, e não em lotes adquiridos.
Trabalhando com a paciência filológica e paleográfica em antigos documentos, Monquelat aporta os Autos de um Processo do ano de 1798, interposto pelo capitão José de Aguiar Peixoto. Oficial no Continente de São Pedro, Peixoto havia recebido em 30 de dezembro de 1790 uma autorização para estabelecer-se num rincão que, até então, não tinha proprietário. Ali passou a criar seus animais e construiu uma charqueada. Tempos depois, por ter tido dois escravos roubados, ele recebe a visita do Juiz Ordinário Luiz Antônio da Silva no dia 20 de março de 1798. Ao trazer tal processo diante do leitor, o foco principal de Monquelat é o modo como o Juiz registra a localidade em que foram inqueridas as testemunhas, e que surge registrada em três momentos do processo como: “Costa do Passo dos Negros, ou Rincão de Pelotas”, “Costa do Passo dos Negros, ou Costa de Pelotas”, e “Rincão de Pelotas”. A partir daqui, a dupla tese de Monquelat entra em andamento. Por um lado, ele insiste no argumento que a localidade era conhecida desde muito cedo por Pelotas; e por outro, com a precisão daqueles que conhecem a antiga cartografia da região, afirma: “é por demais sabido que o local denominado Passo dos Negros não estava localizado na Sesmaria de Pelotas ou Sesmaria do Rincão de Pelotas, cujo primitivo sesmeiro foi o coronel Tomás Luiz Osório”.
Citando documentos, o pesquisador coloca em andamento suas reflexões. Mostra, então, como o capitão José de Aguiar Peixoto vendeu, em 16 de novembro de 1807, ao capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos, uma “porção de terreno com estabelecimento de charqueada, sito no Rincão denominado de Pelotas”. Na sequência, interessado num acontecimento que ocorre sete anos mais tarde, Monquelat aporta também um Termo, lavrado na Fazenda do Arroio Moreira, em 03 de Janeiro de 1814. Nele, o casal Antônio Francisco dos Anjos e Maria Micaela do Nascimento disseram, perante testemunhas que, devido ao fato “do Reverendo Vigário Felício Joaquim Costa Pereira não ter terreno em que edificasse a Igreja Matriz de São Francisco de Paula, desta Freguesia e possuíndo nós, no Distrito de Pelotas, terrenos por compra que fizemos ao casal do falecido José de Aguiar Peixoto, doamos nestes mesmos terrenos, setenta braças de terra de comprido; e trinta braças de frente para se edificar a sobredita Igreja Matriz e seu competente Adro”. Pontuando que a doação para a construção da Igreja Matriz foi formalizada em 1814, Monquelat também informa, pouco antes, que o padre Felício já morava desde 1812 no local que abrigara a charqueada do capitão Aguiar Peixoto, e que pertencia a Antonio dos Anjos, nas ruas que hoje correspondem a Gonçalves Chaves entre Neto e Voluntários.
Antonio dos Anjos doa, portanto, em 1814, a área de terra para a construção da nova Igreja (o grifo é dos autores) e, a partir de então, muitas pessoas o procuram para aforar (arrendar) as terras em torno da mesma. Tudo isto fica registrado no documento central que, na sequência, é apresentado ao leitor, a saber, os “Termos de Aforamento” (realizados, sobretudo, entre 1814 e 1816). Em todos esses termos, Antonio dos Anjos arrenda parte de suas terras, em troca de uma quantia monetária. Todavia, como em sua maior parte os contratos não foram cumpridos pelos arrendatários, o capitão-mor encaminha um Requerimento ao Príncipe Regente para que apure o caso, de modo a receber o que lhe cabe. É então que, novamente, os autores do livro deixam o leitor frente ao modo como o Tabelião lavra o documento no que se refere à localidade. Sobretudo no ano de 1814, os documentos são concluídos ora como “Freguesia de São Francisco de Paula”, ora como “Freguesia de São Francisco de Paula de Pelotas”, o mesmo ocorrendo até a metade 1815, momento a partir do qual surge tão somente “Freguesia de São Francisco de Paula”.
Se inicialmente estávamos frente a documentos que falavam emRincão de Pelotas”, agora estamos diante de outros que trazem o registroFreguesia de São Francisco de Paula de Pelotas”. Por certo, no Termo de Doação ao Padre Felício, o próprio Antônio dos Anjos ora fala emDistrito de Pelotas”, ora em “desta Freguesia” [referindo-se a São Francisco de Paula]. A oscilação não é fortuita. É essa oscilação, presente até hoje para os pesquisadores, que leva Monquelat a ponderar: “Até mesmo trabalhos importantes, como é o caso de Pelotasgênese e desenvolvimento urbano (1780-1835), a certa altura da obra, lê-se: ‘Por Alvará de 7 de julho de 1812, era criada a freguesia de Pelotas, que, inicialmente, chamou-se São Francisco de Paula’ (...) quando, nos parece, seria cronologicamente correto dizer o contrário”. Embora cuidadoso no modo como se dirige ao trabalho de pesquisadores da história de Pelotas, o autor constrói sua própria posição acerca da fundação da freguesia, com base em documentos. Nesse sentido, surge ao final do livro a “Resolução de Consulta da Mesa de Consciência e Ordens”, datada de “31 de janeiro de 1812”, que Crêa (cria) as freguezias do Arroio Grande, Pelotas, e Cangussú na Capitania de S. Pedro do Rio Grande do Sul” e vem assinada por Sua Alteza Real no Palácio do Rio de Janeiro. Tal Resolução teria sido executada depois que os moradores fizeram requerimento para “a creação de Freguezias nos referidos logares”.
Insistindo sobre registros comoCampos chamados das Pelotas”, “Costa de Pelotas”, e “Rincão de Pelotaspara enfatizar o nome primitivo da localidade; pontuando que o capitão Antonio dos Anjos comprou umRincão denominado de Pelotas”; aportando documentos nos quais constam os arrendamentos realizados em logradouros como “do Torres”, “de Santo Antonio”, “da Vigia”, “de São Miguel”, “do Padeiro”, “das Flores”, os quais mostram os nomes dos primeiros habitantes e os locais do processo de urbanização (em ruas que correspondem, respectivamente, às atuais Major Cícero, Senador Mendonça, General Argolo, Dr. Cassiano, Andrade Neves), o livro de Monquelat e Marcolla, é, no mínimo, uma obra que instiga o debate, bem como estimula novas investigações. Sobretudo quando estamos próximos de comemorar os duzentos anos da formação da freguesia que deu origem à cidade de Pelotas.



Resenha publicada no Jornal Diário da Manhã, em 02 de Julho de 2010.
** Professor Adjunto de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas.