domingo, 24 de outubro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (11)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores


Voltando à Corte, novamente a burocracia portuguesa e os interesses dos Contratadores de Sal do Brasil prevaleceram; e, assim sendo, o Conde de Rezende, que recebeu a incumbência de dar o parecer sobre o proposto em 29 de junho de 1795, não o fez, mesmo se tratando de um pedido da Rainha. A ponto de “[...] apesar dos pedidos para que acelerasse esta expedição sem que até aqui tenham produzido o menor efeito, Sua Majestade ordena que se lhe participe os motivos desta demora”. Isto, em 30 de setembro de 1796.
De qualquer forma, e pouco esperançoso, resolveu Alexandre Inácio tentar melhor sorte por outros meios, como se pode ver pela “Proposta de gêneros” que ofereceu remeter do Rio Grande do Sul para provimento do Real Arsenal da Marinha pelos preços “cômodos” abaixo declarados:
“Carne salgada, limpa de osso, sebo e embarricada, sendo o vasilhame por conta da Real Fazenda, posta no Porto e pronta para embarcar: 600 réis a arroba;
Feijão de diversas qualidades, ervilha, grão e lentilha: 400 réis o alqueire de terra, cujo alqueire, dá dois e meio dos nossos;
Sebo em pão: 640 réis a arroba;
Na cultura do linho-cânhamo, estão empregados 200 escravos tirados da Fazenda de Santa Cruz debaixo das ordens de um Oficial de Tropa. E o que se colhe e se fabrica é remetido para o Rio de Janeiro de onde se tem remetido para este Arsenal, apenas uma pequena porção em que se fez a experiência, e dela se reconheceu ser preferível ao melhor de Riga” [grifos nossos].
Neste mesmo período, em mapa das embarcações que saíram do Continente carregadas de gêneros, cuja autoria bem provavelmente possamos atribuir a Marques de Souza, dá-nos uma clara noção, mês a mês, da quantidade de arrobas de charque exportadas ao preço único de 600 réis por arroba: Jan.: 8.306 @; Fev.: 9.252 @; Mar.: 56.726 @; Abr.: 82.968 @; Maio: 53.128 @; Jun.: 64.540 @; Jul.: 67.866 @; Ago.: 16.160 @; Set. 7.540 @; Out.: 53.082 @; Nov.: 31.430 @; Dez.: 32.883 @; estas 486.901 arrobas foram transportadas em 140 embarcações durante o ano de 1795.
Mesmo o aparente crescimento de exportação do charque não servia para tranquilizar os vassalos de Sua Majestade, que se viram na “indispensável necessidade” de a ela recorrer. O fato ocorreu em 1º de outubro de 1796, quando os moradores e comerciantes do Rio Grande do Sul representaram junto à Rainha (D. Maria I) no sentido de que esta proibisse a entrada de embarcações estrangeiras, nos portos da Bahia e Pernambuco, carregadas de carnes, farinhas e couros, regressando destes mesmos portos com escravos. Alegaram os signatários da Representação, que este comércio causava grandes prejuízos ao Continente, daí se acharem na indispensável necessidade de recorrer a Sua Majestade, expondo os inconvenientes que resultam ao seu comércio, pela pouca extração e exportação que iam tendo as carnes, farinhas e couros, que constituíam o principal ramo de comércio do Continente, em razão de que nas cidades da Bahia e Pernambuco, para onde costumavam ser exportados aqueles gêneros, recebiam e acoitavam várias embarcações provenientes de Montevideo, domínio espanhol, carregadas dos ditos gêneros e efeitos, e que ali os vendiam mais baratos, em razão de que naquele porto estrangeiro, Montevideo, de onde provinham as embarcações, haver abundância de sal, proveniente de salinas naturais; portanto, podiam vender os gêneros e efeitos bem mais baratos. E que o mesmo não acontecia no Rio Grande, pois cada alqueire de sal custava entre quatorze e quinze tostões ou até mesmo mais, pela falta que deste gênero havia em todos os Estancos [monopólios comerciais instituídos pelo Estado] do Brasil. E, porque, não havia razão que os efeitos e gêneros estrangeiros, oriundos de portos proibidos, viessem empatar a extração dos efeitos nacionais; pois estes deveriam ser prioritários. Além do que, a vinda de embarcações estrangeiras não era somente uma transgressão como também eram responsáveis pela evasão de escravos do país que eram, como mercadoria de retorno, levados para os domínios da Espanha, “contrariando as Reais determinações de V. Majestade, com gravíssimo prejuízo de seus direitos e do comércio interior do Continente do Brasil, em dano dos seus fiéis vassalos”.
Por todas estas razões, pediam que Sua Majestade fosse servida em mandar executar as antigas Ordens, que existiam àquele respeito, para que não mais fosse permitido às embarcações estrangeiras fazerem negócios nos portos da Bahia e Pernambuco; principalmente com carnes, farinhas, couros e exportação de escravos, tendo em vista o prejuízo que causava ao comércio dos mesmos gêneros e efeitos do Rio Grande e aos direitos de Sua Majestade, evitando assim o deterioramento da Fazenda Real.
Esperando real mercê, assinavam o documento Francisco Antônio de Souza, Francisco Lopes Nunes, José Pinto Martins, Manoel da Silva Ribeiro, Manoel Ferreira de Barros, Francisco Marques Lisboa, José Antônio de Azevedo, José da Silva Freire, Nicolau V. da Costa, José da Silva Ribeiro, Antônio Vaz de Carvalho e outros.
Aproveitando a oportunidade que nos dá a Representação, na qual é indicado pelos signatários que a razão das carnes procedentes dos domínios da Espanha chegarem aos portos da Bahia e Pernambuco com menores preços devia-se à grande abundância de sal, “proveniente de salinas naturais”, fazemos aqui um breve comentário sobre o sal platino: segundo Horacio Giberti, durante o ano de 1776, uma junta se reuniu em Buenos Aires para tratar da salga de carnes. Nessa ocasião, fazendeiros e comerciantes pediram franquias para a introdução de tonéis e o barateamento do sal. A seguir, chegaram ao Prata especialistas na indústria da salga e fabrico de tonéis; porém, as dificuldades encontradas para conseguirem sal a preços adequados frearam as atividades. O sal de Cádiz, introduzido pelo comércio espanhol, era caríssimo. Por seu barateamento, travaram-se muitas lutas. Em 1778, vice-reinado de Vértiz, partiu de Buenos Aires uma verdadeira expedição militar composta por 400 soldados e 1.000 peões que levaram 1.200 bois, 2.600 cavalos e 600 carretas rumo a Salinas Grandes – sudoeste de Buenos Aires – com a finalidade de trazer o sal. Mais tarde, o vice-rei Loreto estimulou as expedições regulares, o que acabou contribuindo para que a fanega (medida) de sal, que era de 10 ou 15 pesos, baixasse para 5 pesos; mas o sal de Salinas Grandes não era de boa qualidade. A falta de sal bom e barato levou ao fracasso muitas tentativas de salgar carnes. Em que pese alguns intentos esporádicos, é somente com Francisco Medina e o sal da Patagônia que a indústria saladeril platense inaugura uma nova era.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 24 de outubro de 2010.

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (10)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores


Com a morte de Rafael Pinto Bandeira, coube a Manoel Marques de Souza informar ao Secretário Martinho de Melo e Castro o ocorrido: “[...]. Acaba de falecer no dia nove do corrente [09.01.1795] o Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, meu Chefe e primo, tão conhecido e protegido de V. Exª. pela sua aptidão e serviços feitos ao Estado neste Continente, sua Pátria. E recaindo em mim o Comando da Tropa, de que ele era chefe, como tenente-coronel dela, encontrei entre outros papéis [...]”. Dentre os papéis encontrados e enviados por Marques de Souza, em 25 de janeiro de 1795, estava o Mapa das embarcações saídas, carregadas de gêneros produzidos no Continente, pelo porto do Rio Grande, durante os anos de 1790 a 1794.
Reproduzimos, aqui, tão somente, o número de embarcações e o charque nelas carregado; e salientamos ainda que o preço da arroba deste foi de 500 réis em todos os anos. Vejamos: 1790, embarcações (89), carga: 209.418 @; 1791, embarcações (114), carga: 255.326 @; 1792, embarcações (112), carga: 295.671 @; 1793, embarcações (121), carga: 404.745 @ e, em 1794, embarcações (137), carga: 443.462 @.
Se de um lado vemos o progressivo aumento anual da produção de charque, de outro vamos novamente encontrar Alexandre Inácio da Silveira suplicando ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, por mais sal, o que animará a todos “[...] a aumentarem as suas Fábricas de Carnes, couros salgados, manteigas e queijos, por o terem certo e mais perto das suas oficinas [fábricas] quando dele o precisarem; porque até o presente este gênero lhes têm faltado, pelo motivo de não o quererem vender nas diversas Capitanias para onde navegam com suas embarcações carregadas de gêneros de primeira necessidade, com tanta fertilidade e grandeza, que têm chegado às Costas de Leste, Minas e Sertões de Pernambuco. E sendo este ramo do Comércio o maior e o de primeira necessidade de todo o Brasil, digno de utilidade aos Reais direitos de Sua Majestade, se vêem, todos os moradores do Rio Grande, obrigados a sofrerem deste importante Comércio se V. Exª. os não auxiliar na mercê que pedem, não só porque está provado, por experiência observada, que o sal da Europa não é útil para a melhor conservação das carnes, como porque, tendo algumas embarcações dos Suplicantes aportado na Bahia e Pernambuco para venderem os seus gêneros comestíveis, querendo nesta retirada comprarem o sal necessário para o uso das suas fábricas [ilegível], além de se lhes vender por maior preço do que o concedido por Sua Majestade, se lhes têm negado: respondendo os arrematadores do Estanco [do sal], que em primeiro lugar os preferem vender às respectivas Capitanias, obrigando-os, por este injusto meio, a voltarem com suas embarcações alastradas de areia. [...]”.
No longo arrazoado e súplica que faz o procurador Alexandre ao secretário de estado, anexa uma série de certidões passadas pelas Capitanias de Paraíba do Norte e Pernambuco a seu pedido: “Senhores Desembargador-presidente e Inspetores da Mesa da prospecção: Diz Alexandre Inácio da Silveira, que se faz, a bem da Representação que quer fazer a Sua Majestade Fidelíssima, que V. Sª. e Mercês lhe atestem se é útil aos Direitos Reais e interesses particulares dos negociantes e habitantes desta Comarca, a transportação do sal, nela fabricado, para a Capitania do Rio Grande do Sul e a exportação, para esta Comarca, de carnes salgadas daquela Capitania, pela necessidade de gados, devido à esterilidade [seca] de dois anos e que prejudicou todos os Curtumes desta Comarca. Pelo que pede a V. Sª. e Mercês se dignem atestar a verdade do exposto, e receberão Mercê”.
A Atestação: “O Desembargador Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca da Paraíba do Norte, Presidente da Mesa da Inspecção e Inspetores desta por S. Majestade Fidelíssima, que Deus Guarde &, Atestamos que a exportação das carnes da Capitania do Rio Grande do Sul é muito necessária nesta Comarca, em virtude da esterilidade em que ficaram os Curtumes pela falta [de couros] provocado pela seca, que aqui grassou. E que, igualmente, é útil a transportação do sal desta Comarca, por nela haver em abundância. O que tudo resulta também à utilidade dos Direitos Reais, aumento dos dízimos e benefício comum destes povos. E por esta nos ser pedida pelo Suplicante, a mandamos passar e vai subscrita pelo Escrivão da Mesa e por nós assinada. Paraíba, 12 de janeiro de 1795. [...]”.
Quanto à Capitania de Pernambuco, informou o escrivão de Recife, Luiz José de Siqueira que, “[...] desde o ano de 1792 até o de 1794, achei neles [livros] do sal vendido aos negociantes do Rio Grande do Sul na soma de 4.250 alqueires; a saber: no ano de 1792, a Manoel Ferreira de Carvalho, 1.200 alqueires conduzidos na Sumaca Santa Ana, Santo Antônio e Almas; e no ano de 1794, a Antônio da Costa Mineiro, 1.400 alqueires, conduzidos pela Sumaca Nossa Senhora Mãe dos Homens, e ainda no mesmo ano, a Manoel Bernardes, 1.650 alqueires, pelo Bergantim Nossa Senhora da Conceição, e Felicidades; [...]”.
Encerrando a longa Representação, propunha Alexandre Inácio: “[...] Nestas circunstâncias, toma o Suplicante a deliberação de trazer a V. Exª. o número [quantidade] de mil barris de Carne de Moura, de seis arrobas cada, por donativo deste Contrato, para suprimento da Real Marinha de Sua Majestade, [...] e esperando de S. Majestade a mercê para arrematação do mesmo Contrato, sujeito às condições nele contidas, a fim de que o Suplicante possa voltar ao porto de Pernambuco e carregar de sal o número de até quarenta embarcações, oriundas da sua Capitania do Rio Grande e que já, na saída do Suplicante, principiavam a chegar a Pernambuco carregadas de carnes salgadas, [...]”.
Tendo em vista, no nosso entender, a importância deste personagem, Alexandre Inácio da Silveira, nas suas diversas tentativas de resolver a crucial questão do sal para a Capitania do Rio Grande, resolvemos trazer alguns traços biográficos deste, considerando que dele não há referência alguma na historiografia pelotense ou em obras que tratem sobre charque e charqueadas: Alexandre, natural do Continente (provavelmente nascido em Rio Grande por volta de 1760), era filho do tenente de mar Matheus Ignacio da Silveira e de Dona Maria Antônia da Silveira. O pai, Matheus, era natural da Freguesia de Nossa Senhora das Angústias (Ilha de Fayol), filho de Miguel Corrêa da Silveira e de Dona Maria Jacinta. A mãe, Dona Maria Antônia da Silveira (irmã de Isabel Francisca da Silveira e de Mariana Eufrásia da Silveira), era natural da Freguesia de São Salvador (Ilha do Fayol) e filha do alferes Antônio Furtado de Mendonça e Isabel da Silveira.
Ao buscarmos informações sobre Alexandre Inácio da Silveira, nos foi possível elucidar três fatos novos para a história de Pelotas. O primeiro deles é o ano da morte do Capitão-mor Manoel Bento da Rocha, 1796; o segundo, foi o nome completo de sua mulher, Isabel Francisca da Silveira, e não apenas Isabel Silveira como se supunha. E que esta era filha do Alferes Antônio Furtado de Mendonça e de Isabel da Silveira – o que não se tinha certeza.
Alexandre Inácio, em julho de 1796, ao solicitar à Rainha o posto de Capitão-mor das Ordenanças, que vagara – conforme palavras do próprio – por falecimento de seu tio Manoel Bento da Rocha, disse ser Ajudante das Ordenanças da Capitania do Rio Grande.
No pedido, que lhe foi negado, anexou vários documentos, e dentre eles o atestado assinado por Joaquim José dos Santos Cassão, Capitão-tenente das naus da Armada Real e Comandante das fragatas de Sua Majestade, Mãe de Deus, São José e Belona, cujo teor informava que ele, Alexandre Inácio da Silveira, exercera as funções de Voluntário Exercitante, Sargento de Mar e Guerra e a de Oficial do Detalhe na Fragata Belona até 10 de janeiro de 1779, data em que desembarcou na cidade do Rio Grande.
Já em requerimento de 17 de julho de 1801, no qual solicitou à Coroa a devolução dos documentos que anexara no pedido de 1796, se dizia Capitão de Fragata Graduado na Real Armada.

Continua...
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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.

Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 17 de outubro de 2010.

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (9)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores


A ideia de instalar um grande estabelecimento saladeiril no Continente do Rio de São Pedro, pelos irmãos Pereira de Almeida e seus sócios, já era manifesta desde que o tenente Antônio Ribeiro de Avelar e Antônio dos Santos, homens de negócios no Rio de Janeiro, constituíram, em 5 de setembro de 1789, por procuração passada em cartório da mesma cidade, como procuradores e sócios na arrematação dos contratos antes referidos e “instalação de um estabelecimento no Rio Grande do Sul, a José Rodrigues Pereira de Almeida e João Rodrigues Pereira de Almeida”.
Em Lisboa, Alexandre Inácio da Silveira, em 1º de setembro de 1793, na condição de procurador da Câmara e dos moradores da Capitania do Rio Grande do Sul, peticiona à Rainha, alegando já estar na Corte há dezoito meses e não ter conseguido embarcar para os portos do Rio Grande e Santa Catarina, apesar do Real Aviso de 13 de agosto, os seguintes gêneros: “cem mil cruzados de fazendas [tecidos], duzentas pipas de vinho, cinquenta pipas de vinagre, doze pipas de azeite, dois mil moios de sal, cem barris de alcatrão e cem de peixe” (grifos nosso). No entanto, somente em 13 de agosto de 1795, Sua Majestade “é servida ordenar que V. Sª. mande passar as necessárias licenças para que o Suplicante, per si, ou com nome de seu correspondente nesta Corte, Antônio José Batista de Sales, possam transportar, para as partes do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, todo o Sal que pretenderem extrair, e cujos despachos requerem na Mesa [repartição] competente, visto que a referida extração em nada se opõe às Condições do referido Contrato na forma declarada por V. Sª., que assim se execute”.
Enquanto Alexandre Inácio sofria as agruras da burocracia portuguesa na Corte, acrescida dos interesses particulares dos burocratas junto aos contratadores do sal, os negociantes e fazendeiros do Continente do Rio Grande de São Pedro representavam junto ao Marechal Governador no sentido de que este gestionasse à Rainha para que eles, comerciantes, não tivessem, ao exportarem seus produtos, de passar pelo porto do Rio de Janeiro como havia determinado o Conde de Rezende, vice-rei do estado do Brasil. A súplica continha sessenta assinaturas e, dentre elas, estavam as de José Rodrigues Barcelos, Antônio Francisco dos Anjos, José Tomaz da Silva e José Vieira da Cunha, todos charqueadores em Pelotas.
Ao receberem o requerimento na Corte, coube primeiramente a Martinho de Melo e Castro manifestar-se junto ao Conde de Rezende, o que é feito em 1º de junho de 1794: “[...] que os gêneros e produções, de qualquer das Capitanias do Brasil, possam ser transportados de umas para outras, sem o menor obstáculo ou restrição, sem obrigação alguma de escalar, por esse ou algum outro Porto. O que V. Exª. fará executar nessa Capitania, e o participará ao Governador do Rio Grande de São Pedro, [...]”.
Vinte dias depois (20.06.1794): “Dona Maria, por Graça de Deus, Rainha de Portugal diz que [...], lhe fizeram presente a Representação que tinham feito os Negociantes e Fazendeiros daquele Continente ao Governador do mesmo, da qual igualmente se vos remete a cópia assinada pelo dito Conselheiro, em que pedem em atenção às justas causas que nela alegam, se lhes mandasse levantar a novíssima ordem Vossa, mandada publicar no dito Continente, pela qual se proíbe a liberdade de poderem eles, negociantes e fazendeiros, continuar na navegação, não só de seus barcos carregados de carne seca, diretamente para os portos da Bahia e Pernambuco, como francamente o faziam, mas nem ainda aquelas Sumacas, que dos mesmos Portos se destinavam ao nominado Continente para comprarem o referido gênero [carne seca], sem que primeiro fossem obrigados a aportarem na cidade do Rio de Janeiro, [...]. E sendo vista a dita carta e representação, sou Servida Ordenar, nos informeis com o vosso parecer. [...]” (grifos nossos).
A justificativa do Conde de Rezende, em 10 de novembro do mesmo ano, foi de que: “[...] Majestade, em nome do Corpo do Comércio, quando me pareceu conveniente obrigar todas as embarcações, que daquele Continente navegam para diferentes Portos da América, dessem entrada no desta Cidade, foi pelos motivos que respeitosamente passo a referir: Sendo o primeiro, promover eficazmente os interesses da Fazenda Real desta Capitania, a fim de aumentar os seus rendimentos, que além das muitas aplicações deste Estado, se destinam não só às despesas atuais das Folhas Eclesiástica, Civil e Militar do Rio Grande, como dependente e sujeito a esta Capital, mas ainda para a importante diligência da Demarcação, na qual se têm dispendido grandes somas; e, igualmente, o efetivo pagamento de soldos à Tropa do mesmo Continente e Santa Catarina, do que não achei memória, se tivesse praticado em tempo algum, com a presente pontualidade, devida aos arbítrios de que me tenho servido, evitando despesas supérfluas e abusivas, para aplicar os rendimentos afins, e indispensáveis, como o de pagar a uma tropa que faz um serviço laborioso no Campo, em uma fronteira confinante com os espanhóis e facilíssima à deserção, por ser totalmente aberta, resultando o gravíssimo prejuízo de se aumentarem as forças dos espanhóis, à medida dos homens que desertam para aquelas terras. O que ficará remediado e evitará a causa do seu desgosto, com a prontidão do pagamento que lhe compete e fazendo também o giro do dinheiro da Tropa, mais opulento o Continente. E, sendo ao mesmo tempo certificado de terem saído do Porto do Rio Grande infinitas embarcações carregadas de gêneros e efeitos para a Bahia e Pernambuco, que deixando de pagar os devidos direitos nesta Alfândega, vão aumentar os rendimentos daquelas Capitanias, que não têm participação no incômodo de socorrer e contribuir com a menor assistência ao referido Continente, [...]; acresce mais, que muitas das sobreditas embarcações, que se destinam da direção do Rio Grande para os portos da Bahia e Pernambuco, inegavelmente as carregam de gêneros contrabandeados, principalmente couros espanhóis, que ali não são tão conhecidos como o são nesta Capital, pela frequência da navegação; além da facilidade de serem baldeados para outros lugares e ancoradouros sem o temor de serem pegos ou denunciados, ficando assim muito a salvo e com toda a liberdade, porque, nem no Rio Grande e nem em Santa Catarina, por onde muitas embarcações fazem escala, há Alfândegas nem vigias que fiscalizem os gêneros que compõem suas cargas. [...]. Esta afetada representação, primeiramente pela prontidão com que se desembaraçavam as embarcações, logo que tivessem dado entrada, como também pelo abominável comércio do contrabando, por excessivo, escandaloso e prejudicialíssimo a V. Majestade, especialmente com os espanhóis, que aumentando as suas forças com gente e na agricultura, pelo considerável número de escravos, que, extraviados, passam para Montevideo a troco de efeitos dos mesmos espanhóis, que vêm também a fazer um novo prejuízo no empate dos gêneros deste País, chegando à má fé e ambição dos negociantes, carregadores, capitães e mestres das embarcações, e mais do que tudo, a desobediência às positivas ordens de V. Majestade, a pedirem despachos para os Portos em que licitamente comercializam e de mandarem para o de Montevideo, infinitas vezes provado, por apreensões feitas como também pelo excessivo preço em que se reputam os escravos. O que deixo dito é incontestável, porque por fatos o tenho conhecido. E também é presumível que os mesmos capitães, que navegam de Angola e Benguela para este Porto com escravatura, na altura do Rio de Janeiro, passem escravos para embarcações que os estejam esperando, segundo os ilícitos e prejudiciais ajustes, que sobre esta negociação tenham feito os negociantes daqueles Portos com os desta Cidade e do Rio Grande, porque estes últimos mais facilmente os passarão do Continente para Buenos Aires.
Também é presumível que da mesma escravatura que vem para esta Cidade, se compra parte, e se destina ao mesmo fim, o do contrabando, saindo em lanchas de pesca até as grandes e desertas enseadas da Ilha Grande, que, pela sua comodidade, foram em algum tempo escolhidas pelos contrabandistas para manejarem, sem o menor receio, esta negociação; porém, como a Representação que os Negociantes do Rio Grande fizeram sobre a danificação das carnes, cujo gênero neste País facilmente se corrompe, me vi obrigado a fazer, sobre este objeto, uma séria reflexão, por meio da qual houvesse de ocorrer de um lado ao interesse da Fazenda Real com os Reais Direitos que julguei lhe deveriam pertencer, por ser o Governo do Rio Grande sujeito ao desta Capital; [...]. É o que se me oferece expor a V. Majestade neste particular, em consequência da Representação da Câmara do Rio Grande e da Provisão, que V. Majestade me dirigiu. [...]”.


Continua…



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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 10 de outubro de 2010.

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (8)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores


Concluindo, fazemos coro com a voz de Arturo Ariel Bentancur, autor da obra já citada e que tornou possível este trabalho, ao nos dizer sobre o saladero de Medina:
Quando começava a dar seus primeiros frutos, a morte prematura de seu criador e o quase paralelo descobrimento de uma série de delitos de que a empresa era filha, frearam uma carreira destinada ao maior brilhantismo. Porém, isso não impediu que fecundasse a semente do progresso inevitável da atividade, que ali começava a germinar...
Considerando o até aqui exposto, o que ainda poderíamos ter dito e não o dissemos sobre o castellano Medina, resta-nos uma indagação: pode-se de alguma forma traçar algum paralelo – mesmo que grosseiro como todos os comparativos costumam ser – entre o espanhol Don Francisco Medina Portillo e o português José Pinto Martins? A resposta nos parece óbvia: não. Tampouco o cronológico, o tal que estabelece o ano de 1780 – que ainda hoje me pergunto de onde saiu coincidente e redonda data – tanto aqui quanto lá, da instalação do primeiro saladero e da primeira charqueada. Isto porque acreditamos ter ficado documentalmente claro, o homem de Sebico instalou o seu projeto maior, um verdadeiro e visionário complexo industrial, entre os anos de 1787-88 e não 1780 (MONQUELAT, 2009, p. 71-97).
Voltando ao Continente de São Pedro, podemos dizer que naquela mesma época, época da correspondência de Mateus Vaz Curvelo e seus sócios, o número de vassalos de Sua Majestade, segundo o Mapa geral de toda a população pertencente ao Governo do Continente do Rio Grande formado pelos resumos, que deram os Vigários de cada uma das Freguesias do mesmo Governo, datado e assinado por Rafael Pinto Bandeira na vila do Rio Grande de São Pedro aos 26 de fevereiro de 1791, era de 25.032.
Destes, 7.341 eram do sexo masculino e 6.916 do feminino. A população de forros, índios e escravos somava o total de 10.775, distribuídos da seguinte forma: Forros pardos 116, pardas 138, pretos 169 e pretas 199; índios 381 e índias 416; escravos pardos machos 385, pardas fêmeas 327; pretos machos 4.797, pretas fêmeas 2.587. Ao lado, no quadro estatístico dos escravos, trazia a seguinte informação: Nascidos: 1.260; sem indicação de sexo ou condição destes.
Se considerarmos o total de 25.032 habitantes, veremos que o número de escravos pardos e negros de ambos os sexos (8.100) representava trinta e dois, trinta e seis por cento (32,36%) da população.
Informava, ainda, Pinto Bandeira que nas 87 embarcações saídas do porto de Rio Grande, durante o ano de 1790, foram carregadas 209.418 arrobas de Charque ou carne seca, ao preço de 320 réis por arroba; 8 pipas de Carne de Salmoura a 6.000 réis por pipa, dentre diversos outros produtos.
Em Lisboa, por meados de julho de 1791, Francisco Gomes Valente, comerciante de Coimbra, pleiteava, junto à Rainha, permissão para trazer um Patacho carregado de sal e outros víveres ao Continente do Rio Grande de São Pedro.
Rafael Pinto Bandeira, dia 27 de fevereiro de ano de 1792, informava a Martinho de Melo e Castro, através do Extrato da exportação dos efeitos, que 106 embarcações haviam carregado na barra do Rio Grande de São Pedro 255.926 arrobas de charque ao preço de 400 réis a arroba; dentre outros produtos arrolados, tais como trigo, farinha de trigo, sebo, couros em cabelo, queijos e manteiga se encontravam 211 arrobas de erva mate ao preço de 1.000 réis por arroba.
Para melhor compreensão das enormes dificuldades porque passava a região neste período, nada mais esclarecedor do que a reprodução integral do ofício do comandante do Rio Grande de São Pedro, Rafael Pinto Bandeira, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro: “Ilustríssimo e Exmo. Sr./ Meu Senhor, ainda que presentemente se ache recolhido à sua residência o Marechal de Campo, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara; contudo, como nos anos de 1790 e 1791, tenho posto na presença de V. Exª. a relação das exportações dos principais efeitos [produtos] produzidos neste Continente, pareceu-me justo acumular, a elas, a exportação do ano próximo passado de 1792 para que V. Exª. veja o sucessivo progresso que vai havendo de um ano para outro, e o que poderá haver daqui para frente, havendo quem olhe para este fértil e utilíssimo Continente, e quem lhe promova providências. Eu fui o primeiro que mostrei a V. Exª. o rendimento do Real Quinto dos Couros deste Continente, e pelas notícias que aqui correm, se sabe o aumento do valor pelo qual foi arrematado o dito quinto, nessa Corte. Esta fronteira, presentemente, se conserva no maior sossego; mas, assim mesmo os espanhóis continuam a aproximar-se com Guardas [postos]. O meu, dito Governador, tem feito conservar o meu plano de vigilância onde na Guarda de São João do Erval, há três Companhias de Cavalaria que constituem a legião do meu comando.
Exmo. Sr., agora tivemos a felicidade de receber três meses de soldo, depois de passados mais de quatorze meses sem este; além dos anos que se vão atrasando, pois há Oficiais a quem S. Majestade deve de soldos, doze, quatorze e quinze mil cruzados. Ora, considere V. Exª. como estes oficiais e suas famílias terão passado, e ainda que necessidades estão sofrendo, fazendo o atual serviço, o serviço de Campanha. Pelo que, Exmo. Sr., queira, por quem é, lembrar e compadecer-se deles. E queira também, V. Exª., perdoar estas minhas insistentes súplicas, que me obrigam a pôr na benigna presença de V. Exª. as necessidades que vejo sofrer esta pobre e sofredora tropa. [...]. Rio Grande, 20 de fevereiro de 1793”.
A relação mencionada por Pinto Bandeira, dos efeitos que se exportaram em 112 embarcações que saíram do porto de Rio Grande no ano de 1792, trazia 296.571 arrobas de Carne Seca, sem indicação do preço destas. Dentre os gêneros que entraram no mesmo porto, estavam 316 escravos, 35.040 alqueires de sal e outros.
Quanto ao contrato do Real quinto dos Couros, lembrado por Pinto Bandeira no ofício enviado a Melo e Castro, bem como os do Gado em pé, do fornecimento da farinha de guerra e carne fresca à tropa do mesmo Continente e o dos Dízimos Reais, foram todos arrematados por José Rodrigues Pereira de Almeida, como sócio e procurador de Antônio Ribeiro de Avelar e Antônio dos Santos.
A validade destes Contratos era de 1º de janeiro de 1794 a 31 de dezembro de 1796. No entanto, as intenções de José Rodrigues Pereira de Almeida e seus sócios não implicavam somente em explorar os direitos que estes lhes davam; havia também, por parte dos arrematantes, o propósito de instalarem no Continente do Rio Grande um grandioso estabelecimento – o que veremos mais adiante.

Continua...

Referências

MONQUELAT, A. F. Don Francisco Medina, el tasajo y Pelotas. In: ______. Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2009. p. 71-100.
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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 03 de outubro de 2010.

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (7)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

A indústria de carnes salgadas entre os súditos da coroa espanhola


Levantaram no lugar uma olaria a serviço da construção da infra-estrutura. Junto a ela se achavam outros dois ranchos de palha onde viviam os mestres oleiros.
Um novo galpão cumpria três funções de uma só vez: aposentos de escravos, cozinha e forno de pão, oco este último, que ao mesmo tempo servia para fabricação subsidiária de velas de sebo. Para este fim, contava também com duas caldeiras e um grande tacho, todo de cobre, material de que estavam construídos os demais implementos.
Uma ramada descoberta, vizinha do saladero, permitia, entretanto, pendurar sebo, graxa e ocasionalmente alguns coelhos ou outros produtos da abundante caça que na época era pródiga à silvestre campanha.
Completavam o entorno da fábrica os currais imediatos ao galpão do matadouro, um para o gado e outro para cavalos ao que se unia a uma certa distância um novo e grande curral destinado à marcação dos animais.

Los aposentos del patrón:
Quase a uma légua deste núcleo, próximo à Vila Nuestra Señora del Rosario, se achava outro, que constituía praticamente o casco da estância. Ali vivia Medina, em um rancho que não se diferenciava muito dos anteriores: era também de pau a pique, telhado com junco e forrado em ambos lados com mezcla de bosta. Não faltou ao seu redor a horta onde alguns servidores cultivavam hortaliças e atendiam 160 árvores frutíferas, cercadas com madeira para evitar danos dos animais soltos.
Um novo rancho estava destinado à cozinha, outro a depósito e o quarto abrigava lá pulpería, explorada pelo compadre Juan Viola. As quatro precárias construções formavam a pequena praça do conjunto. Um mais, também de pau a pique e barro, que ficava ao fundo da horta, era a residência do capataz e tinha contíguo o aposento “de los negros”.
Se distribuíam também no campo da estância quatro postos, com seus respectivos ranchos e currais. Os designavam respectivamente Santíssima Trinidad, de los mojones, de las cabeceras del Sauce y San Francisco de Borja.
Certos galpões já existentes desde os tempos dos Bethlemitas, junto a boca del Rosario, serviram como depósitos para couros e carnes em processamento. Por sua vez, outro rancho agregado pela administración Medina no Puerto del Sauce, lugar de embarque e desembarque, continha as reservas de sal empregadas no estabelecimento, servindo ainda como moradia temporária a tripulantes dos barcos da empresa. Um armazém igualmente novo, de artigos de consumo para este pessoal e reparação ou auxílio das embarcações, completava a infra-estrutura da zona portuaria del Colla.
À parte de toda esta infra-estrutura, majoritariamente montada por Medina e às suas ordens, o empreendedor castelhano contou com uma base teórico-prática de suma importância. Tinha o empresário um conhecimento bastante apreciável. Entre seus papéis foram encontrados cópias de um método para fazer tasajo, um volume com apontamentos e curiosidades sobre salga de carnes, aproveitamento de graxas, sebos, etc., assim como uma carta, que em português lhe escreveu José I. Arouche, em torno desse tipo de estabelecimento.
Também possuía alguns conhecimentos práticos, resultado do já citado trabalho empírico, inscrito entre a série de ensaios menores escritos entre o final da década de 70 e começos da seguinte, na região.
Contou Medina com abundante pessoal, em todo sentido misto: mão de obra masculina e feminina, livre e escrava (quizá con predominio cuantitativo de esta última), estrangeira e nacional (aquela com participação de especialistas ingleses que assumiram a direção técnica do estabelecimento fabril). E, por suposto, dispôs de homens de confiança, encabeçados pelo mayordomo Blas de Benancio y su capataz mayor, Sebastián González. O número total de pessoas empregadas na fábrica foi calculado por Francisco de Paula Sanz nas já citadas duas centenas, quando a visitou em outubro de 1787. A estas duas centenas se deve somar os peões e posteiros da estância, pessoal embarcado, assim como tarefistas usados para transladar gado desde las Misiones ou outras tarefas temporárias. Os escravos comprados superaram o número de 100, dadas as aquisições feitas a Manuel Cayetano Pacheco (que posteriormente viria a reclamar pelos 119 negros vendidos e não pagos por Medina).
Ainda que os inventários realizados após a morte do castelhano – um ano depois de sua instalação en el Colla – não incluam mais de uma vintena, é sabido, graças a Arturo Ariel Bentancur, que o comprovou através do caso do cuidador dos porcos, apresado cerca de Minas pouco depois de morir el amo, que muitos escravos fugiram depois do fato e consequente falta de mandos abruptamente producida.
Fizemos questão de destacar as palavras escravos, escrava e os números dessa mão de obra não assalariada empregada no saladero de Medina, porque temos nos deparado, já por diversas vezes, com a explicação pueril de que o charque produzido nos saladeros rioplatenses era de melhor qualidade, porque estes usavam somente mão de obra livre e especializada, o que não foi totalmente verdadeiro. Mas este é um assunto do qual trataremos em outra oportunidade, quando vermos a locação de escravos tanto nos saladeros quanto nas charqueadas.
De qualquer forma, se considerarmos a mão de obra empregada nos saladeros argentinos, uruguaios ou rio-grandenses muito posteriores, que andava entre 40 e 70 pessoas, teremos uma idéia da grandiosidade do projeto saladeril de Medina.
Chegada a temporada de 1787, mesmo com projeto inconcluso, iniciaram as atividades. Os operários e três especialistas ingleses empregaram seus braços e talento para que funcionasse um grande saladero. A tecnologia usada deu de pronto frutos de excelente qualidade.
Medina “descubrió el secreto” – como recordaria anos depois o vice-rei Arredondo – e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência das do Norte. Em nada mais consistia – acrescentava o monarca com relação à fórmula vencedora – “que en sublimar la salmuera del barril con una corta dosis de sal nitro. E, assim sendo, nos diz ainda Bentancur que “la producción comenzaba a apilarse en los galpones del Colla.
Mas nem tudo ali era favorável... El pionero, soporte de tantos sueños, había sido trasladado de urgencia a Buenos Aires por la aparición de los primeros síntomas de un tipo de hidropesía, convertida en freno fatal en la carrera hacia el mayor éxito empresarial de su vida.
Ao entrar agosto, a saúde de Medina se agravou de tal forma, que as únicas esperanças estavam depositadas en un milagro de la Medicina. O milagre não veio, e Medina aos treze dias do mesmo mês morreu.
Lentamente foram obtendo crédito as carnes da Banda Oriental. Las exportaciones se triplicaron entre 1788 (año de la muerte de Medina) y el seguiente, al pasar de 10.135 quintales a 33.327.
O processo de expansão se deu praticamente de forma paralela e em tempos muito próximos à ação de Medina. O padre Pérez Castellanos, “en su conocida carta de 1787 se refería a otros dos saladeros cercanos a Montevideo y contemporaneos al del Colla […] Uno de esos establecimientos montevideanos era el de Francisco Antonio Maciel, ubicado a orillas del Miguelete y con varios anexos de actividades similares.
Na mesma época tiveram igualmente fábricas, nas imediações de Montevideo, Miguel Ryan, Juan Camilo Trápani e Juan Balbín de Vallejo. O primeiro deles foi autorizado por Ortega para instalar um saladero a meia légua da cidade, pelo que foi embargado e paralisado em 1788, quando processaram ao funcionário infiel por sua complicação no desfalque da Aduana de Buenos Aires. Ryan era de ascendência irlandesa e natural de Madri, com experiência “em salazón de carnes en Chile. Aquí comenzó por 1780, instalado en el Arroyo Seco, donde se asentó definitivamente.

Continua...

Referências

MONQUELAT, A. F. Don Francisco Medina, el tasajo y Pelotas. In: ______. Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2009. p. 71-100.
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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 26 de setembro de 2010.

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (6)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

A indústria de carnes salgadas entre os súditos da coroa espanhola


Finalizando a oferta, Medina fixava a data para o eventual começo da empresa, pelo menos um ano depois, considerando que se achava precisamente na estação mais propícia para a atividade, já que precisaria da refrigeração natural como garantia indispensável para conservar as carnes.
Mas o hombre recto, recente titular da cadeira de vice-rei, interpôs seu veto às pretensões de Medina. Entendia, o Marquês de Loreto, que as verdadeiras intenções do castellano eram orientadas para a futura prática do contrabando na Ensenada de Castillos, pois o simples fato de existir um porto na estância pretendida era, no entendimento de Loreto, suficiente obstáculo à venda, pois “Además poco frecuentado, difícil su acceso, apartada su ubicación y lejano por tierra, lo estimaba más proporcionado para um giro clandestino que, sin intentarlo Medina, sería facil y podría incurrirlo outro poseedor de futuro.
Loreto, por sua vez, em uma nova proposta, reafirmava como de seu próprio interesse o projeto saladeril, desde que a participação de Medina se desse por via subsidiária. Elogiava a importância da salga de carnes, fazendo menção a experiências anteriores de menor porte já levadas a cabo no ramo. Dentro do mesmo documento incrustou uma nova proposta que havia recebido de Manuel Melián, mais relacionado com o ramo do que Medina, porque já possuía Melián um pequeno saladero às margens do rio San Salvador. Seus antecedentes na atividade saladeril remontavam ao próprio porto de Cádiz onde dizia já haver provisionado carnes e alguns barcos. Desde 1779 se achava no Rio da Prata instalado no referido local, que entendeu apropriado “y donde levantó galpones, corrales y ranchos”.
Vimos, no início deste trabalho, que Melián, atendendo o pedido do intendente Manuel Ignácio Fernández, embarcou no início de 1780 (!), a bordo dos navios El Rosario y Dolores, 136 barris de carne através do porto de Montevideo. Acrescentamos, após o ano de 1780, um ponto de exclamação no intuito de chamarmos a atenção de que na referida data é o nome de Melián, e não o de Medina, que surge no cenário da salga de carnes.
Diante de tão demorada disputa, Medina resolveu dar outro rumo a seus passos. Renunciar à estância Don Carlos foi sua primeira resolução, alegando que por ela haviam duvidado de suas boas intenções, e isto lhe parecia o suficiente para desprezá-la.
Portanto, decidiu nosso personagem que: “Desde hoy agitaré con más empeño la compra de la estancia de los PP. Bethlemitas, sobre cuya elección me asisten tres razones a mi modo de entender muy esenciales, cada una en su especie: la primera, porque con el ganado que ella tiene y poco más que yo compre, podré salar en todo el inmediato invierno los ocho mil quintales de carne que debe componer cada remesa; la segunda porque se consigue sacar de manos muertas este terreno, en que adquiere el Estado una ventaja en el día bien demostrada, y la tercera porque ya no pienso en la estancia de Don Carlos de manera alguna”.
Embretado pelos reflexos da polêmica entre Sans e Loreto, a resolução tomada por Medina em outubro de 1786 foi ao mesmo tempo drástica e audaz, porém, dada a sua situação econômica, em que, apesar de possuir frota própria e capital imobilizado, estava arruinado, “falto de credito y de movimiento serio en sus ganâncias”[...].
Por isso, necessitava novamente ajuda em dinheiro. E é assim que, apesar de endividado, o castellano recebe, através da Junta da Real Fazenda de Buenos Aires, sob fiança, um empréstimo de 15 mil pesos por 2 anos, por conta de novos créditos que viesse a obter junto à Coroa.
O resto dos recursos necessários para alimentar “una boca que jamás había bastante para cerrarla”, como foi a fábrica em sua fase de instalação, partiu do desonesto comandante Francisco de Ortega – é o que nos informa o historiador Arturo Ariel.
Ortega já havia, anteriormente, na empresa pesqueira, dado um apoio direto ao homem de Sebico, bem como o haviam feito outros personagens da “rosca administrativo-oligárquica de lá región. Mas, dessa vez, ao socorrer os bolsos de um capitalista em apuros, se convertia em sócio do mesmo, com a condição de receber inicialmente dez por cento dos lucros e, posteriormente, cinquenta por cento destes, segundo palavras do próprio comandante ao final de sua carreira funcional e delituosa.
Dessa forma, Medina compra os direitos dos Padres Bethlemitas (pertencentes a uma ordem religiosa de origem guatemalteca e estabelecidos em Buenos Aires, na época) e uns documentos de medição a Valentín Güeli e seus irmãos em caráter de herdeiros de Félix Sánchez, cuja legitimidade nunca pôde revalidar.
A estância empregada para assentamento da fábrica se achava a uma légua da “Villa Nueva Nuestra Señora del Rosario, o San Antonio, o el Colla (nombre éste que lá zona, em sentido más amplio que el casco poblado, tomara de un indio de esa nación establecido allí em 1726)” e próxima ao Puerto del Sauce, no atual Departamento de Colonia. Amplo rincão limitado por el Rosario, el Sauce, el Plata y el corral del rey, havia sido baldio e realengo antes de ser outorgado ao Convento Bethlemítico, que o ocupava já em 1751.
Vejamos agora em detalhes a planta que despertou a admiración de esta Provincia por los edificios que había labrado.
A edificação, composta por numerosos ranchos, foi levantada com paredes de tijolos e barro em uns casos, e, em outros, empregaram o simples pau a pique. Seus tetos eram de trama de junco ou telhas e argamassa, para oferecer no conjunto um aspecto rude, típico das construções industriais da época. Reunia, em um verdadeiro complexo, espaços dedicados às diferentes atividades, próprias ou relacionadas com a salga e abrigou em seu interior ou à sua volta, em torno de duzentos operários. O setor principal esteve por suposto na fábrica de salga, que compreendia 5 galpões destinados às correspondentes etapas do processamento: el matadero, onde os desnucadores acuchillaban as reses sacrificadas cada dia; tinha 34 varas (+ ou – 28,5m de largura). Era aberto nos dois costados, igual a uma de suas frentes, mas dividido por uma parede de arbustos rebocada com barro. Dentro, 15 molinetes, com seus respectivos aparelhos, serviam para matar, desossar, suspender e despedaçar o gado.
O chamado laboratorio de salazones era, por sua vez, o centro motriz do estabelecimento. Até ali se transladavam, sobre carros e carrinhos de mão, os animais mortos, para degola, tirar o couro e cortar em largas tiras, que uma vez oreadas ingressavam nos depósitos de sal onde permaneciam os 40 ou 50 dias necessários para sua verdadeira maturidade. Tinha este ambiente 60 varas (+ ou – 50 m de largura): em seu centro se punham em linha reta 10 grandes tanques para a salmoura e oito mesas de pedra lavrada, tijolos e argamassa, que deixavam nos seus flancos espaços para a dispersão e troca do pessoal. A luz penetrava através de quatro janelas laterais e duas portas.
Outro galpão de 23 varas (+ ou – 19 m) abrigava a tonelaria, marcenaria e carpintaria e se achava logicamente em comunicação com o saladero. O segundo ambiente em superfície, de 47 varas (+ ou – 39 m de largura), servia de depósito à produção em duas divisões estabelecidas e a terceira servia de dormitório para os mestres toneleros.
Um quarto galpão – de iguais dimensões do que o maior – fechava com os anteriores o amplo pátio do estabelecimento, e não chegou a ser terminado durante o tempo de atividade da planta toda. Próximo a este conjunto estava outro grande ambiente fechado, 44 varas (+ ou – 37 m de largura), destinado, sua parte principal, para dormitório do pessoal e o resto para armazenar tasajo (charque).

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Referências

MONQUELAT, A. F. Don Francisco Medina, el tasajo y Pelotas. In: ______. Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2009. p. 71-100.
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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 19 de setembro de 2010.