domingo, 29 de agosto de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (3)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores no primeiro período (1780-1800)

Dando continuidade ao ofício do Conde de Rezende, diz-nos este: “será bem digno de lástima que por falta de indústria e atividade, nos vejamos na dependência de nos utilizarmos das carnes de Montevidéu, comprando-as por um preço que, ainda sujeitos a muitos riscos e descontos, não deixe de fazer conta aos interessados; sendo, além disso, evidente que esse socorro é precário e só permitido naquelas circunstâncias que as leis toleram, a tempo que vindo desse Continente seria preferível a todos os respeitos que reservam à ponderação de V. Exª.
Recopilando, finalmente, tudo quanto por vezes e agora tenho dito, certifico a V. Exª., que estou inteiramente persuadido das incalculáveis vantagens desse comércio, ou seja, a benefício dos particulares ou da Fazenda Real e que V. Exª., tendo além da mesma persuasão e conhecimento dos meios que de mais perto pode aplicar para estabelecer uma Fábrica tão interessante, dará um pronto cumprimento às ordens de S. A. Real e não deixará de assentir às minhas recomendações sobre o mesmo objeto pois são conformes às que semelhantes recebo e não poderão diminuir o merecimento que tão justamente adquira V. Exª. em ter promovido solidamente este desejoso comércio”.
Este final do Ofício reforça nossa tese de que até aquele momento, 20 de novembro de 1800, o charque produzido no Continente não havia atingido o estado de uma boa qualidade, ou pelo menos de um nível que atendesse à expectativa e interesses da Coroa, pois se lia, ainda que “digno de lastima, [...] por falta de indústria e atividade nos vejamos na dependência de nos utilizarmos das carnes de Montevidéu [...]”.
Um outro aspecto deste Ofício é a passagem em que o Vice-rei diz estar inteiramente convencido das “incalculáveis vantagens desse comércio [referindo-se às carnes salgadas], ou seja, a benefício dos particulares ou da Fazenda Real”, estando também persuadido de que o Governador empregaria os mesmos esforços até então aplicados no sentido de o Rio Grande melhorar a qualidade de suas carnes salgadas, “para estabelecer uma Fábrica tão interessante”.
Entendia o Vice-rei que o desempenho do Governador, nesses objetivos, não somente atenderia às ordens de Sua Alteza Real, como também lhe traria o mérito de ter “promovido solidamente este desejoso comércio”.
Antes de nos reportarmos à “Fábrica tão interessante” mencionada no Ofício, recuaremos ao ano de 1789, onde encontraremos os comerciantes Mateus Vaz Curvelo, Bento José Marques e Simão Lopes & Irmão propondo à rainha (D. Maria I), inflamados pelo desejo de serem uteis à sua pátria, e adiantarem os seus interesses particulares por meios lícitos e honestos, lembrando que sendo o Rio Grande de São Pedro, “por sua feliz situação e altura do pólo em que se encontra, um país fecundo e mais fértil que nenhum outro dos domínios de V. Majestade, e muito próprio para semear o linho-cânhamo, como a experiência já o havia demonstrado e ali se poderia melhorar o trigo e fazer carnes de moura para o uso da Marinha, aos moldes das feitas na Irlanda, e buscarem o sebo apurado e necessário aos usos domésticos e por isso e por outras mais razões para ali queriam mandar seu navios com fazendas [tecidos] européias” ao mesmo tempo que pediam que lhes fosse dado o direito, por Contrato, de levarem o sal necessário para a salga de carnes, dos couros e gasto doméstico, visto que o Contrato de Sal do Brasil não tem privilégios que se estendam além de Santos, e cinco léguas entorno, o que, por consequência natural e legítima, é do domínio e poder de V. Majestade, ou deixar franco (aberto, liberado) este ramo do comércio ou criar no futuro um novo Contrato.
A cautela dos comerciantes proponentes de um Contrato do Sal, ou autorização da Rainha para levarem sal ao Continente e Santa Catarina, certamente era consequência do oneroso e negativo resultado que poucos meses antes tivera Manuel Pinto da Silva; pois em sua segunda viagem, cujo objetivo era levar sal e carregar carne de moura, caiu, por desvio de rota, em mãos do Contratador do Sal do Brasil Joaquim Pedro Quintela & Cia., e teve de assinar o Termo de Tomadia, onde declarou que: “[...] tendo expedido de Lisboa o dito Bergantim [antiga embarcação à vela e remo], nele fiz carregar 95 moios [um moio equivalia a 60 alqueires; e um alqueire era igual a 13,8kg] de sal, com o destino de o levar para o Rio Grande de São Pedro, para vendê-lo por minha conta [...]”.
Joaquim Pedro Quintela e Cia. tinham o direito do Sal do Brasil de 1º de janeiro de 1788 a 1º de abril de 1801 e o Contrato lhes dava o poder de apresar qualquer embarcação que transportasse sal, dentre outros direitos.
Não obstante o oneroso incidente, Manoel Pinto da Silva não desistiu do intento. E, assim sendo, vamos encontrá-lo aos 10 dias do mês de dezembro de 1790 requerendo à Rainha, com base no argumento de que o Rio Grande e Santa Catarina eram muito próprios para deles se exportar para Lisboa muitos dos frutos produzidos naqueles lugares, principalmente trigo, farinha, queijos, manteiga e carnes de salmoura, com tamanha abundância, que poderiam abastecer não só a Marinha Real como também a Praça de Lisboa. Disse ainda que, tendo chegado daqueles lugares um Bergantim seu, trazendo por amostra parte dos ditos frutos em perfeito estado, e sabendo a necessidade que os habitantes, para maior comércio e manufatura dos referidos gêneros, tinham do sal, se ofereceu para supri-los, pois não estavam aqueles dois Portos compreendidos no “Contrato do Sal do Brasil” e, assim sendo, suplicou aquele Contrato pelo prazo de 10 anos, para o qual incluiu em seu requerimento as condições.
Na primeira delas se ofereceu a pagar livres para a Fazenda Real trinta contos de reis, em 10 parcelas de 3 contos cada uma, vencendo-se a primeira em 1º de junho de 1792, ou seja, um ano após o início do Contrato; e a última em início de junho de 1801, quando findava o Contrato. Na terceira se obrigava a remeter, por sua conta e risco, todo o sal necessário para abastecer “[...] ditos dois países e seus distritos, o qual venderá na Ilha de Santa Catarina a novecentos e sessenta reis cada alqueire; e no Rio Grande de São Pedro a mil e cem reis, [...]”. A 12ª condição encerrava a proposta, que assinou e datou em Lisboa.
Vimos que a pretensão, tanto de Mateus Vaz Curvelo e seus sócios, quanto a de Manuel Pinto da Silva, ao trazerem sal para o Continente, era estimular o fabrico das “carnes de moura aos moldes das feitas na Irlanda”, para o uso da Marinha, bem como a praça de Lisboa.
A vontade dos súditos portugueses, em aliviar os cofres da Coroa, provinha desde há muito, pois já na segunda década de instalação da Colônia do Sacramento, ou mais precisamente no ano de mil seiscentos e noventa e oito, no governo de Dom Francisco Naper, foi feita a primeira experiência do fabrico de “carnes de vaca em pipas”.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 29 de agosto de 2010.

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