domingo, 24 de outubro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (9)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores


A ideia de instalar um grande estabelecimento saladeiril no Continente do Rio de São Pedro, pelos irmãos Pereira de Almeida e seus sócios, já era manifesta desde que o tenente Antônio Ribeiro de Avelar e Antônio dos Santos, homens de negócios no Rio de Janeiro, constituíram, em 5 de setembro de 1789, por procuração passada em cartório da mesma cidade, como procuradores e sócios na arrematação dos contratos antes referidos e “instalação de um estabelecimento no Rio Grande do Sul, a José Rodrigues Pereira de Almeida e João Rodrigues Pereira de Almeida”.
Em Lisboa, Alexandre Inácio da Silveira, em 1º de setembro de 1793, na condição de procurador da Câmara e dos moradores da Capitania do Rio Grande do Sul, peticiona à Rainha, alegando já estar na Corte há dezoito meses e não ter conseguido embarcar para os portos do Rio Grande e Santa Catarina, apesar do Real Aviso de 13 de agosto, os seguintes gêneros: “cem mil cruzados de fazendas [tecidos], duzentas pipas de vinho, cinquenta pipas de vinagre, doze pipas de azeite, dois mil moios de sal, cem barris de alcatrão e cem de peixe” (grifos nosso). No entanto, somente em 13 de agosto de 1795, Sua Majestade “é servida ordenar que V. Sª. mande passar as necessárias licenças para que o Suplicante, per si, ou com nome de seu correspondente nesta Corte, Antônio José Batista de Sales, possam transportar, para as partes do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, todo o Sal que pretenderem extrair, e cujos despachos requerem na Mesa [repartição] competente, visto que a referida extração em nada se opõe às Condições do referido Contrato na forma declarada por V. Sª., que assim se execute”.
Enquanto Alexandre Inácio sofria as agruras da burocracia portuguesa na Corte, acrescida dos interesses particulares dos burocratas junto aos contratadores do sal, os negociantes e fazendeiros do Continente do Rio Grande de São Pedro representavam junto ao Marechal Governador no sentido de que este gestionasse à Rainha para que eles, comerciantes, não tivessem, ao exportarem seus produtos, de passar pelo porto do Rio de Janeiro como havia determinado o Conde de Rezende, vice-rei do estado do Brasil. A súplica continha sessenta assinaturas e, dentre elas, estavam as de José Rodrigues Barcelos, Antônio Francisco dos Anjos, José Tomaz da Silva e José Vieira da Cunha, todos charqueadores em Pelotas.
Ao receberem o requerimento na Corte, coube primeiramente a Martinho de Melo e Castro manifestar-se junto ao Conde de Rezende, o que é feito em 1º de junho de 1794: “[...] que os gêneros e produções, de qualquer das Capitanias do Brasil, possam ser transportados de umas para outras, sem o menor obstáculo ou restrição, sem obrigação alguma de escalar, por esse ou algum outro Porto. O que V. Exª. fará executar nessa Capitania, e o participará ao Governador do Rio Grande de São Pedro, [...]”.
Vinte dias depois (20.06.1794): “Dona Maria, por Graça de Deus, Rainha de Portugal diz que [...], lhe fizeram presente a Representação que tinham feito os Negociantes e Fazendeiros daquele Continente ao Governador do mesmo, da qual igualmente se vos remete a cópia assinada pelo dito Conselheiro, em que pedem em atenção às justas causas que nela alegam, se lhes mandasse levantar a novíssima ordem Vossa, mandada publicar no dito Continente, pela qual se proíbe a liberdade de poderem eles, negociantes e fazendeiros, continuar na navegação, não só de seus barcos carregados de carne seca, diretamente para os portos da Bahia e Pernambuco, como francamente o faziam, mas nem ainda aquelas Sumacas, que dos mesmos Portos se destinavam ao nominado Continente para comprarem o referido gênero [carne seca], sem que primeiro fossem obrigados a aportarem na cidade do Rio de Janeiro, [...]. E sendo vista a dita carta e representação, sou Servida Ordenar, nos informeis com o vosso parecer. [...]” (grifos nossos).
A justificativa do Conde de Rezende, em 10 de novembro do mesmo ano, foi de que: “[...] Majestade, em nome do Corpo do Comércio, quando me pareceu conveniente obrigar todas as embarcações, que daquele Continente navegam para diferentes Portos da América, dessem entrada no desta Cidade, foi pelos motivos que respeitosamente passo a referir: Sendo o primeiro, promover eficazmente os interesses da Fazenda Real desta Capitania, a fim de aumentar os seus rendimentos, que além das muitas aplicações deste Estado, se destinam não só às despesas atuais das Folhas Eclesiástica, Civil e Militar do Rio Grande, como dependente e sujeito a esta Capital, mas ainda para a importante diligência da Demarcação, na qual se têm dispendido grandes somas; e, igualmente, o efetivo pagamento de soldos à Tropa do mesmo Continente e Santa Catarina, do que não achei memória, se tivesse praticado em tempo algum, com a presente pontualidade, devida aos arbítrios de que me tenho servido, evitando despesas supérfluas e abusivas, para aplicar os rendimentos afins, e indispensáveis, como o de pagar a uma tropa que faz um serviço laborioso no Campo, em uma fronteira confinante com os espanhóis e facilíssima à deserção, por ser totalmente aberta, resultando o gravíssimo prejuízo de se aumentarem as forças dos espanhóis, à medida dos homens que desertam para aquelas terras. O que ficará remediado e evitará a causa do seu desgosto, com a prontidão do pagamento que lhe compete e fazendo também o giro do dinheiro da Tropa, mais opulento o Continente. E, sendo ao mesmo tempo certificado de terem saído do Porto do Rio Grande infinitas embarcações carregadas de gêneros e efeitos para a Bahia e Pernambuco, que deixando de pagar os devidos direitos nesta Alfândega, vão aumentar os rendimentos daquelas Capitanias, que não têm participação no incômodo de socorrer e contribuir com a menor assistência ao referido Continente, [...]; acresce mais, que muitas das sobreditas embarcações, que se destinam da direção do Rio Grande para os portos da Bahia e Pernambuco, inegavelmente as carregam de gêneros contrabandeados, principalmente couros espanhóis, que ali não são tão conhecidos como o são nesta Capital, pela frequência da navegação; além da facilidade de serem baldeados para outros lugares e ancoradouros sem o temor de serem pegos ou denunciados, ficando assim muito a salvo e com toda a liberdade, porque, nem no Rio Grande e nem em Santa Catarina, por onde muitas embarcações fazem escala, há Alfândegas nem vigias que fiscalizem os gêneros que compõem suas cargas. [...]. Esta afetada representação, primeiramente pela prontidão com que se desembaraçavam as embarcações, logo que tivessem dado entrada, como também pelo abominável comércio do contrabando, por excessivo, escandaloso e prejudicialíssimo a V. Majestade, especialmente com os espanhóis, que aumentando as suas forças com gente e na agricultura, pelo considerável número de escravos, que, extraviados, passam para Montevideo a troco de efeitos dos mesmos espanhóis, que vêm também a fazer um novo prejuízo no empate dos gêneros deste País, chegando à má fé e ambição dos negociantes, carregadores, capitães e mestres das embarcações, e mais do que tudo, a desobediência às positivas ordens de V. Majestade, a pedirem despachos para os Portos em que licitamente comercializam e de mandarem para o de Montevideo, infinitas vezes provado, por apreensões feitas como também pelo excessivo preço em que se reputam os escravos. O que deixo dito é incontestável, porque por fatos o tenho conhecido. E também é presumível que os mesmos capitães, que navegam de Angola e Benguela para este Porto com escravatura, na altura do Rio de Janeiro, passem escravos para embarcações que os estejam esperando, segundo os ilícitos e prejudiciais ajustes, que sobre esta negociação tenham feito os negociantes daqueles Portos com os desta Cidade e do Rio Grande, porque estes últimos mais facilmente os passarão do Continente para Buenos Aires.
Também é presumível que da mesma escravatura que vem para esta Cidade, se compra parte, e se destina ao mesmo fim, o do contrabando, saindo em lanchas de pesca até as grandes e desertas enseadas da Ilha Grande, que, pela sua comodidade, foram em algum tempo escolhidas pelos contrabandistas para manejarem, sem o menor receio, esta negociação; porém, como a Representação que os Negociantes do Rio Grande fizeram sobre a danificação das carnes, cujo gênero neste País facilmente se corrompe, me vi obrigado a fazer, sobre este objeto, uma séria reflexão, por meio da qual houvesse de ocorrer de um lado ao interesse da Fazenda Real com os Reais Direitos que julguei lhe deveriam pertencer, por ser o Governo do Rio Grande sujeito ao desta Capital; [...]. É o que se me oferece expor a V. Majestade neste particular, em consequência da Representação da Câmara do Rio Grande e da Provisão, que V. Majestade me dirigiu. [...]”.


Continua…



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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 10 de outubro de 2010.

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