domingo, 24 de outubro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (11)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

Charque, charqueadas e charqueadores


Voltando à Corte, novamente a burocracia portuguesa e os interesses dos Contratadores de Sal do Brasil prevaleceram; e, assim sendo, o Conde de Rezende, que recebeu a incumbência de dar o parecer sobre o proposto em 29 de junho de 1795, não o fez, mesmo se tratando de um pedido da Rainha. A ponto de “[...] apesar dos pedidos para que acelerasse esta expedição sem que até aqui tenham produzido o menor efeito, Sua Majestade ordena que se lhe participe os motivos desta demora”. Isto, em 30 de setembro de 1796.
De qualquer forma, e pouco esperançoso, resolveu Alexandre Inácio tentar melhor sorte por outros meios, como se pode ver pela “Proposta de gêneros” que ofereceu remeter do Rio Grande do Sul para provimento do Real Arsenal da Marinha pelos preços “cômodos” abaixo declarados:
“Carne salgada, limpa de osso, sebo e embarricada, sendo o vasilhame por conta da Real Fazenda, posta no Porto e pronta para embarcar: 600 réis a arroba;
Feijão de diversas qualidades, ervilha, grão e lentilha: 400 réis o alqueire de terra, cujo alqueire, dá dois e meio dos nossos;
Sebo em pão: 640 réis a arroba;
Na cultura do linho-cânhamo, estão empregados 200 escravos tirados da Fazenda de Santa Cruz debaixo das ordens de um Oficial de Tropa. E o que se colhe e se fabrica é remetido para o Rio de Janeiro de onde se tem remetido para este Arsenal, apenas uma pequena porção em que se fez a experiência, e dela se reconheceu ser preferível ao melhor de Riga” [grifos nossos].
Neste mesmo período, em mapa das embarcações que saíram do Continente carregadas de gêneros, cuja autoria bem provavelmente possamos atribuir a Marques de Souza, dá-nos uma clara noção, mês a mês, da quantidade de arrobas de charque exportadas ao preço único de 600 réis por arroba: Jan.: 8.306 @; Fev.: 9.252 @; Mar.: 56.726 @; Abr.: 82.968 @; Maio: 53.128 @; Jun.: 64.540 @; Jul.: 67.866 @; Ago.: 16.160 @; Set. 7.540 @; Out.: 53.082 @; Nov.: 31.430 @; Dez.: 32.883 @; estas 486.901 arrobas foram transportadas em 140 embarcações durante o ano de 1795.
Mesmo o aparente crescimento de exportação do charque não servia para tranquilizar os vassalos de Sua Majestade, que se viram na “indispensável necessidade” de a ela recorrer. O fato ocorreu em 1º de outubro de 1796, quando os moradores e comerciantes do Rio Grande do Sul representaram junto à Rainha (D. Maria I) no sentido de que esta proibisse a entrada de embarcações estrangeiras, nos portos da Bahia e Pernambuco, carregadas de carnes, farinhas e couros, regressando destes mesmos portos com escravos. Alegaram os signatários da Representação, que este comércio causava grandes prejuízos ao Continente, daí se acharem na indispensável necessidade de recorrer a Sua Majestade, expondo os inconvenientes que resultam ao seu comércio, pela pouca extração e exportação que iam tendo as carnes, farinhas e couros, que constituíam o principal ramo de comércio do Continente, em razão de que nas cidades da Bahia e Pernambuco, para onde costumavam ser exportados aqueles gêneros, recebiam e acoitavam várias embarcações provenientes de Montevideo, domínio espanhol, carregadas dos ditos gêneros e efeitos, e que ali os vendiam mais baratos, em razão de que naquele porto estrangeiro, Montevideo, de onde provinham as embarcações, haver abundância de sal, proveniente de salinas naturais; portanto, podiam vender os gêneros e efeitos bem mais baratos. E que o mesmo não acontecia no Rio Grande, pois cada alqueire de sal custava entre quatorze e quinze tostões ou até mesmo mais, pela falta que deste gênero havia em todos os Estancos [monopólios comerciais instituídos pelo Estado] do Brasil. E, porque, não havia razão que os efeitos e gêneros estrangeiros, oriundos de portos proibidos, viessem empatar a extração dos efeitos nacionais; pois estes deveriam ser prioritários. Além do que, a vinda de embarcações estrangeiras não era somente uma transgressão como também eram responsáveis pela evasão de escravos do país que eram, como mercadoria de retorno, levados para os domínios da Espanha, “contrariando as Reais determinações de V. Majestade, com gravíssimo prejuízo de seus direitos e do comércio interior do Continente do Brasil, em dano dos seus fiéis vassalos”.
Por todas estas razões, pediam que Sua Majestade fosse servida em mandar executar as antigas Ordens, que existiam àquele respeito, para que não mais fosse permitido às embarcações estrangeiras fazerem negócios nos portos da Bahia e Pernambuco; principalmente com carnes, farinhas, couros e exportação de escravos, tendo em vista o prejuízo que causava ao comércio dos mesmos gêneros e efeitos do Rio Grande e aos direitos de Sua Majestade, evitando assim o deterioramento da Fazenda Real.
Esperando real mercê, assinavam o documento Francisco Antônio de Souza, Francisco Lopes Nunes, José Pinto Martins, Manoel da Silva Ribeiro, Manoel Ferreira de Barros, Francisco Marques Lisboa, José Antônio de Azevedo, José da Silva Freire, Nicolau V. da Costa, José da Silva Ribeiro, Antônio Vaz de Carvalho e outros.
Aproveitando a oportunidade que nos dá a Representação, na qual é indicado pelos signatários que a razão das carnes procedentes dos domínios da Espanha chegarem aos portos da Bahia e Pernambuco com menores preços devia-se à grande abundância de sal, “proveniente de salinas naturais”, fazemos aqui um breve comentário sobre o sal platino: segundo Horacio Giberti, durante o ano de 1776, uma junta se reuniu em Buenos Aires para tratar da salga de carnes. Nessa ocasião, fazendeiros e comerciantes pediram franquias para a introdução de tonéis e o barateamento do sal. A seguir, chegaram ao Prata especialistas na indústria da salga e fabrico de tonéis; porém, as dificuldades encontradas para conseguirem sal a preços adequados frearam as atividades. O sal de Cádiz, introduzido pelo comércio espanhol, era caríssimo. Por seu barateamento, travaram-se muitas lutas. Em 1778, vice-reinado de Vértiz, partiu de Buenos Aires uma verdadeira expedição militar composta por 400 soldados e 1.000 peões que levaram 1.200 bois, 2.600 cavalos e 600 carretas rumo a Salinas Grandes – sudoeste de Buenos Aires – com a finalidade de trazer o sal. Mais tarde, o vice-rei Loreto estimulou as expedições regulares, o que acabou contribuindo para que a fanega (medida) de sal, que era de 10 ou 15 pesos, baixasse para 5 pesos; mas o sal de Salinas Grandes não era de boa qualidade. A falta de sal bom e barato levou ao fracasso muitas tentativas de salgar carnes. Em que pese alguns intentos esporádicos, é somente com Francisco Medina e o sal da Patagônia que a indústria saladeril platense inaugura uma nova era.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 24 de outubro de 2010.

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