segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (20)*



A. F. Monquelat
V. Marcolla

O charque no Rio da Prata

Alguns autores têm levado a crédito do governador da Colônia do Sacramento, Francisco Naper, o pioneirismo da salga de carnes no Rio da Prata. Isto, no final do Século XVII, graças às exitosas experiências realizadas por Naper e continuadas no início do século seguinte por Sebastião Xavier da Veiga, quando, atingindo elevados níveis de produção, tornou possível exportar tais carnes para o Brasil e Portugal.
Hoje, podemos dizer que este pioneirismo coube tão somente entre os súditos da coroa portuguesa; pois, a primeira notícia que se tem a respeito de carnes salgadas, é a de que, pelo porto de Buenos Aires, no ano de 1603, foram exportados para o Brasil, Guiné e outras ilhas circunvizinhas, quinhentos quintales de cecina, quinhentas arrobas de sebo e farinha de trigo.
Quinhentos quintales de cecina era o equivalente a duas mil arrobas espanholas.
O processo de fabrico da cecina consistia no corte da carne em tiras finas e estreitas, que era secada ao sol com um pouco de sal.
Esta produção e exportação de carne salgada foi autorizada por Felipe III através da Real Cédula de 20 de agosto de 1602.
Em 1617, o Procurador Geral das Províncias do Rio da Prata, capitão Manuel de Frías, em um Memorial enviado ao Rei, assim se expressou quanto ao baixo custo da cecina: “500 quintales de cecina não valem nada, porque uma vaca vale um peso e meio; e somente para sacarem o couro, se mata uma grande quantidade de reses, sem que delas aproveitem nada mais de que o couro e sebo, porque a carne é deixada no campo, e ali não haverá quem compre a cecina; mas, vale quatro pesos o quintal, pelo trabalho de fazê-lo e o sal que gastam [...]”.
E é, exatamente pelo sal gasto, o motivo pelo qual os habitantes de Buenos Aires protestaram contra o fabrico de carnes salgadas; pois, também entre eles, havia escassez deste produto. Tanto que, em 1622, o Alcaide Ordinário, capitão Diego Páez de Clavijo, denunciou ao Cabildo, que todo o sal que chegava ao porto de Buenos Aires ia parar nas estâncias, sem que nada sobrasse para os pobres da cidade.
Nos informa Montoya (1970) que as exportações de cecina não se limitaram apenas às quantidades estabelecidas na Real Cédula de 20 de agosto de 1602; e sim, que se repetiram em diversos outros anos até pouco depois da metade do Século XVII, e disto há muitos informes; podendo se calcular em torno de setenta outras exportações desse produto, entre os anos de 1603 e 1655, com destino ao Rio de Janeiro, Pernambuco e Reino de Angola, ainda que de menores quantidades.
Também nos diz Montoya que é de se presumir, assim mesmo, que juntamente com aquelas exportações registradas pelos funcionários da coroa espanhola, outras se realizaram, quem sabe até de maior volume, de forma clandestina.
A exportação feita no ano de 1655 pôs fim à primeira etapa do comércio de carnes salgadas no Rio da Prata.
Segundo Montoya, a partir de então e por quase século e meio, como consequência da falta de vendas ao exterior, as carnes dos gados perderam, em ambas as margens do Rio da Prata, todo o valor comercial. Tamanha foi a queda, que ao descourarem os animais nas vacarias para negociarem seus couros, as carnes eram deixadas de lado e serviam tão somente para alimento das aves ou dos cães cimarrones.
Posterior a estes fatos temos, no ano de 1698, governo de Francisco Naper, o envio de várias pipas de carne salgada, desde a Colônia do Sacramento para a cidade do Porto (Portugal), e que as mesmas chegaram ao seu destino em ótimas condições.
Em correspondência datada desde a Colônia do Sacramento, aos 12 dias de maio de 1702, informava o governador, Sebastião Xavier da Veiga, ao rei D. Pedro II que, “Por ordem do governador do Rio de Janeiro [Francisco de Castro Morais], mandei 18 pipas de carne para o sustento da gente que vem para Montevideo; e me parece dizer a V. Majestade que, segundo o estado presente das coisas, se pode aqui fazer todos os sebos e carnes que forem necessárias para as naus de guerra e comboios; com muita conveniência e nenhuma dificuldade; (desde que) vindo pipas, arcos e sal, sem mais despesa do que a de se pagar aos homens que as salgarem. O que entendo ser muito conveniente [tanto] as de moura como as secas; porque não tendo osso algum, sendo bem feitas, aturam [duram] todo o tempo. Com a certeza deste aviso, determinará V. Majestade, como for servido”.
Um fato bastante curioso a respeito desta correspondência, é que dizem, e o primeiro a dizê-lo nos parece ter sido Jonathas da Costa Rego Monteiro em sua obra sobre a Colônia do Sacramento, e que depois de dito o dito, outros seguiram dizendo, que o governador Sebastião da Veiga teria dito ao Rei, do econômico que resultava preparar a carne salgada; pois não exigia nada mais que o gasto com o sal, um pouco de pólvora e as diárias pagas aos salgadores.
Vejam que, em momento algum do texto, há qualquer referência à palavra pólvora; e além do mais, que receita bem estranha seria aquela, caso necessária fosse a pólvora para a salga das carnes.
Cremos ter sido um erro paleográfico, acontecido quando da leitura e transcrição do documento.
Já do lado espanhol, a oportunidade de ser feito um maior aproveitamento das carnes do Rio da Prata, foi visto por primeira vez, pelo Capitão de Milícias de Guancabelica, Antonio Josef del Castillo, em carta enviada ao Rei em 1771.
Nessa correspondência propunha o Capitão de Milícias que se formasse uma Companhia para o comércio de carnes salgadas e sebo entre Buenos Aires e a metrópole. Nas considerações de sua proposta, mencionava o capitão del Castillo os prejuízos que sofriam os fazendeiros do Rio da Prata pelo pouco valor de seus novilhos e as vantagens que haveria de trazer-lhes, bem como ao Real Erário, a criação de uma Companhia para atender tal propósito. Acompanhava sua exposição um cálculo do que custaria a salgação e o transporte das carnes, bem como os lucros que deixariam para a Empresa na venda dos produtos na península. Como reforço de seus argumentos, fazia notar, entre outras coisas, que esse comércio poria fim ao contrabando da Colônia do Sacramento e evitaria, além do mais, a saída ao estrangeiro das grandes somas que anualmente importava a compra das carnes inglesas (MONTOYA, p. 14-15).
Nos assegura Montoya (1972), que a plausível iniciativa do capitão del Castillo foi reenviada ao Vice-rei do Peru, e posteriormente tratada pelo Conselho das Índias; porém, sem nada de positivo ter acontecido, e que no ano de 1777, passou a ser estudada pelo Cabildo de Buenos Aires.
Uma outra proposta para a salga de carnes do Rio da Prata e de Tucuman, foi apresentada ao Rei, em 1776, pelo Oficial Real Interino de La Paz, Pedro Nolasco Crespo, e comunicada imediatamente pelo Ministro Gálvez às autoridades de Buenos Aires.
Consultado sobre o assunto o Honorável Cabildo e o Tenente do Rei, Diego de Salas, este último se dirigiu aos principais fazendeiros bonaerenses, recolhendo-lhes sua opinião quanto à quantidade de quintales que se poderiam exportar anualmente, o preço de venda e a época que consideravam mais oportuna para os trabalhos.
Diz Montoya que 21 fazendeiros responderam as perguntas; porém, de todas as respostas recebidas poucas trouxeram alguma luz à matéria.
O Cabildo, por sua parte, expôs seus pontos de vista em Sessão aprovada em 29 de outubro de 1777. Acreditavam seus componentes que era possível produzir cem mil quintales de carnes salgadas, desde que cumpridas as seguintes condições: que por conta do Real Erário viessem da Espanha os barris para o envase das carnes, e estes seriam distribuídos entre os fazendeiros; teriam de construir armazéns para receberem os barris; entregues e reconhecidas as carnes, se pagaria o valor à vista, e, a partir disso, ficariam por conta da Fazenda Real; os trabalhos de salgas se realizariam do começo de abril até o mês de setembro; o preço das carnes, levando em conta as conveniências de estabelecer este ramo de negócio tão útil aos povoadores, se poderia estabelecer em três pesos o quintal.
Tais discussões e pretensões, não deram em nada.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 02 de janeiro de 2010.

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