domingo, 16 de janeiro de 2011

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CHARQUE NO CONTINENTE DE SÃO PEDRO (22)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

O estabelecimento dos irmãos Almeida e seus sócios chega ao Continente de São Pedro, trazendo irlandeses e suas técnicas na salga de carnes

Com a intenção de tornar mais atraente e compreensível, resolvemos sequenciar todas as informações recolhidas sobre o projeto de instalação de um grande estabelecimento saladeiril no Continente de São Pedro pelos irmãos Almeida e seus sócios, quebrando, desta forma, a metodologia que até então adotáramos; qual seja, a cronológica.
A primeira referência feita a este estabelecimento, pela historiografia sobre charque e charqueadas no Continente de São Pedro, parece-nos estar no artigo “Salgas de Carne”, de autoria do médico, genealogista e historiador Paulo Xavier (1974, p. 9).
Neste artigo, nos diz Paulo Xavier o seguinte: “[...] em correspondência datada em 22-IV-1799, eram recomendados pela Corte ao Vice-rei um grupo de técnicos pela sua habilidade ‘de salga carnes e curtir couros, fazer manteiga e velas de sebo...’”.
Efetivamente, isto consta em uma carta da Corte para o conde de Rezende, onde se determina “facilitar a passagem dos irlandeses João Whechy, Diogo Whechy, Pedro O’Donell e Florêncio Mac Carthy que vão ao Rio Grande salgar carnes e curtir couros, fazer manteiga e velas de sebo”.
E acrescenta Xavier: “Estamos assim em presença de pioneiros quem sabe, da industrialização da matéria prima da campanha riograndense.
Não há dúvida que a empresa surtiu efeito, apesar das poucas informações que até agora a respeito conseguimos documentar.
Encontramos, à propósito, registrado no ‘Almanaque de Porto Alegre’ (1808), de Manoel Antônio de Magalhães, uma notícia que tem ficado à margem das preocupações de muitos historiadores. Na verdade, se trata de um dado importante para a história econômica riograndense.
Parece que a preocupação dominante, de modo geral dos autores, têm sido a absorvente linha política em prejuízo, às vezes, da apreensão global de fato sociológico”.
A seguir, Paulo Xavier reproduz o texto encontrado no “Almanaque”, que aqui deixamos de reproduzir, porque, sobre tais informações, trataremos posteriormente.
Encerrando o Artigo, diz Xavier que “Este é sem dúvida um tema de muita significação para o estudo do processo econômico do Rio Grande do Sul [...]”.
Bem posterior ao artigo de Paulo Xavier, e sem deste termos tido conhecimento, é o nosso trabalho “Sal, escravidão e charque”, publicado na Imprensa, por longo, em dez partes; no qual, dissemos o seguinte sobre o estabelecimento dos irmãos Almeida e seus sócios: “[...] tiveram liberados, por Sua Majestade, a seguinte ‘Lista dos instrumentos e mais acessórios para os Curtumes e Estabelecimento, que José Rodrigues Pereira de Almeida manda estabelecer no Continente do Rio Grande, por permissão de S. Majestade, e que a mesma Senhora, se digna mandar dar livres de direitos [impostos e taxas] no Consulado de saída e entrada na Alfândega do Rio de Janeiro, por onde eles devem ir embarcados; para o Mestre salgador: doze cutelos de ferro, oito dúzias de facas de ferro, seis luvas de couro com pregos, um barril de salitre, doze regadores de ferro e uma balança grande com seus competentes pesos. Para o Mestre curtidor: dezoito raspaduras de ferro, seis rebolos de amolar os ferros, dois barris de [ilegível] de sapatos e uma pedra para [ilegível] a casca. Para o Mestre de velas de sebo, e manteiga: dois engenhos para fazer a manteiga, dois arados, de nova invenção, para uso da lavoura, um parafuso de ferro para a prensa, três caldeiras de ferro, de maior a menor, uma caldeira pequena de cobre, doze panelas pequenas de cobre, sessenta formas de estanho para as velas, três arrobas de fio para os pavios e com arcos de ferro para as tinas.
Os mestres curtidores, salgadores e de fazer manteiga e velas, todos de nação irlandesa, são os seguintes: João Schechy, Diogo Schechy, Pedro O’Donnel e Florêncio Macarthy, caixeiro e intérprete do grupo” (MONQUELAT, 2009, p. 13).
A “Lista dos instrumentos”, contendo os utensílios necessários e o nome dos irlandeses, estava apensada a uma série de outros documentos encaminhados ao Conselho Ultramarino no ano de 1793. No entanto, segundo documento apresentado por Paulo Xavier, é apenas em 22 de abril de 1799 que os irlandeses, ao que tudo indica, chegaram ao Brasil.
Embora não saibamos quando, é certo que entre os anos de 1800 e 1801, o Estabelecimento dos irmãos Almeida e sócios já estava funcionando no Continente, e a prova quem nos fornece “é o chefe dos armazéns do Arsenal Real da Marinha quando, em Lisboa, aos sete de agosto de 1801, envia ofício ao Visconde de Anadia com o seguinte teor: ‘Tendo vindo na nau Princesa da Beira, uma segunda amostra de vaca salgada do Rio Grande, remetida por João Rodrigues Pereira de Almeida, o qual encarregou da dita salga a dois irlandeses, que daqui mandou ir, para o mesmo efeito, com o fim de prover o Arsenal Real da Marinha do dito gênero; assim como o pretende fazer Alexandre Inácio da Silveira, que entregou a primeira amostra nestes Armazéns. Tenho a honra de remeter a V. Exª. uma amostra de vaca [salgada], que ultimamente chegou, por me persuadir ser necessário decidir a qual dos dois se deve dar preferência. Nestes Armazéns, se acha ser melhor a segunda amostra [a do Estabelecimento dos irmãos Almeida]; porém, eu passo a remeter um barril ao Vice-almirante, Antônio Januário do Valle, para ele mandar fazer as experiências necessárias’.
Estranhamos que o autor do ofício, Januário Antônio Lopes da Silva, tenha feito referência a dois irlandeses, quando sabemos que a permissão concedida por Sua Alteza Real, a Rainha, foi para que viessem ao Rio Grande, além do intérprete, três irlandeses” (MONQUELAT, 2009, p. 8).
Um outro aspecto que julgamos interessante observar é quanto a preferência demonstrada entre as duas amostras de carne salgada enviadas àqueles Armazéns; a de Alexandre Inácio da Silveira, com sua técnica continentina, e a dos irmãos Almeida, cujos mestres eram irlandeses. Considerando que a escolha feita nos Armazéns do Arsenal da Real Marinha recaiu sobre a carne preparada pelos técnicos irlandeses e não tenha sofrido influência político-econômica alguma, podemos concluir que, o “se acha ser melhor a segunda amostra”, queria dizer: de melhor qualidade. Portanto, o charque produzido até então, pelos continentinos, não havia atingido um apurado nível técnico, mesmo tendo alcançado duas décadas de fabrico.

Continua...

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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 16 de janeiro de 2011.

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