sábado, 10 de dezembro de 2011

RIO PIRATINI: BERÇO DA INDÚSTRIA SALADEIRIL? (1ª)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

Sim, se considerarmos a afirmação feita por João Cardoso da Silva, quando nos diz ser “um dos mais antigos colonos existentes nesta Capitania; que foi o primeiro que estabeleceu aqui a fábrica de charques, trazendo, para isso, mestres a sua custa, no ano de 1780”, como verdadeira.
Considerando que o dito por João Cardoso foi confirmado pelo Comandante Militar da Fronteira, Manoel Marques de Souza e outras autoridades envolvidas na retomada do território continentino, dela não nos cabe outra alternativa, que não a de aceitá-la como verdadeira. Portanto, foi João Cardoso, personagem de Simões Lopes Neto em um de seus Contos Gauchescos, o primeiro a estabelecer “fábrica de charques” no Continente de São Pedro.
A afirmação feita por João Cardoso não é muito clara nem rica em detalhes, que hoje nos seriam valiosos, pois deixa-nos a dúvida se a fábrica de charques foi estabelecida antes de 1780 e os mestres é que vieram neste ano, ou tanto um acontecimento quanto o outro foram simultâneos.
De qualquer forma, temos dois fatos importantes: João Cardoso foi o primeiro a estabelecer charqueada no Continente e o ano, foi 1780.
Vejamos o que mais disse João Cardoso em outro documento: “que o Suplicante é um vassalo benemérito, pelos bons serviços que tem prestado a Sua Alteza Real; que não tem outras terras, senão aquelas quatro léguas e meia compradas e que é um dos mais antigos colonos deste Continente, que em grande parte lhe deve o seu aumento e auge em que se acha, por ter sido ele [João Cardoso] o primeiro que instituiu aqui [no Continente] a fábrica de carnes de charque, dando aos [de]mais as idéias e noções necessárias para um ramo tão vantajoso ao Estado o que é bem conhecido de V. Ex.ª”.
Há também um terceiro documento, em que João Cardoso, a certa altura, afirma, novamente, ser ele “um dos mais antigos colonos deste Continente [e] o primeiro que nele, à minha custa, erigi Fábrica de Charque, que tanto tem cooperado para o seu aumento [crescimento; desenvolvimento]”.
Em trabalho recente, “João Cardoso: dos contos Gauchescos para a História”, trabalho este que será publicado, na íntegra, no Almanaque do Bicentenário de Pelotas, tratamos do sesmeiro e agro-pecuarista João Cardoso; neste artigo, estamos acrescentando outras informações sobre o pioneiro da indústria saladeiril no Continente de São Pedro.
Dentre as peças que compuseram os “Autos principais do Conselho de Guerra do Coronel Rafael Pinto Bandeira”, remetidos pelo governador do Continente, José Marcelino de Figueiredo ao Vice-rei, Luiz de Vasconcelos e Souza, aparece o nome de João Cardoso em dois momentos, como uma das testemunhas citadas e inquiridas.
No primeiro deles, é dito que a “Testemunha João Cardoso da Silva, soldado da 3ª. Companhia da Cavalaria Ligeira, a folhas 13, diz que [re]tirara o Comandante 30 ou 40 poldros [potros]”.
Já, em depoimento bem mais longo, e que João Cardoso é nominado em 11ª. testemunha, “jurada aos Santos Evangelhos em que pôs a sua mão direita” prometendo dizer a verdade, disse ter de idade 26 anos.
Bem, considerando que o depoimento de João Cardoso da Silva foi tomado em 14 de dezembro de 1778, podemos ter o ano de 1752 como provável ano de seu nascimento.
Prosseguindo na leitura do depoimento, disse João Cardoso “que marchando da Encruzilhada com a sua tropa Ligeira, uma Companhia de Dragões e alguns auxiliares, sendo ao todo uns cento e tantos praças, tendo por Comandante de todo o Corpo o sargento-mor Rafael Pinto Bandeira, em direção à Estacada e ao Acampamento de São Martinho, aonde se encontravam os espanhóis, [...]”; deixamos de reproduzir o resto do depoimento por não trazer elementos relevantes a este artigo.

As Estâncias e Charqueadas da Margem Meridional (Sul) do Rio Piratini

Com o propósito de reforçar nossa tese de que o pioneirismo no estabelecimento das charqueadas, no Continente de São Pedro do Sul, deu-se à margem do rio Piratini, mais precisamente no território onde esteve localizado o antigo forte português denominado de São Gonçalo, região compreendida nos limites do hoje município de Arroio Grande, é que fazemos aqui o aporte de alguns documentos, acreditando que estes possam dar maior clareza e visibilidade ao que estamos afirmando.
Em 21 de julho de 1785, Luís de Vasconcelos e Souza, Vice-rei do Brasil, em ofício endereçado ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, dava notícias quanto à reclamação do primeiro comissário espanhol, coronel José Varela y Ulloa, na qual o referido comissário pedia para que fossem desalojados os portugueses instalados na margem meridional do Rio Piratini.
Dizia, o Vice-rei, que a proposta, ou “reclamação”, era injusta, escandalosa e feita por quem “não tem autoridade e jurisdição para a pretender” e baseava-se na simples notícia que lhe dera D. Diogo de Albear, “seu segundo comissário, de que na margem meridional do Rio Piratini, se achavam alguns estabelecimentos portugueses” e por isso pretendiam que aqueles moradores fossem desalojados imediatamente daqueles terrenos, com o gado e outros animais que ali possuíam; moradores estes, disse o Vice-rei português, “que não podendo subsistir noutro lugar ali se conservam tranqüilamente há muitos anos junto ao Forte português de São Gonçalo” (grifo nosso).
Na continuidade do ofício, entendia o Vice-rei que aquela matéria não deveria ser tratada daquele modo e nem resolvida de forma rápida, ainda que a posse daqueles terrenos se achasse duvidosa e pendente da resolução das duas Cortes; “mas, como ainda no caso de haver alguma probabilidade de que a referida margem meridional, da Lagoa Mirim, fosse pertencente à Espanha, não se devia, antes do Tratado Definitivo dos Limites, conferir aos espanhóis o domínio de semelhantes terrenos, como eles têm pretendido em outras Demarcações”.
A reclamação do comissário espanhol, José Varela y Ulloa, ao nosso comissário para a Demarcação dos Limites, Sebastião Xavier de Veiga Cabral da Câmara, foi feita desde o Campo do Taim, aos seis dias do mês de março do ano de 1785 e, por tratar-se de um importante documento, com muitas informações sobre as áreas em disputa pelas duas Coroas, resolvemos, em tradução livre, transcrevê-la na íntegra: “Meu muito Senhor. No artigo 4º do Tratado Preliminar de Limites, se estabelece a linha divisória pelo Arroio do Taim, seguindo pelas margens da Lagoa da Mangueira, em linha reta até o Mar; e, se diz depois, que pela parte do Continente irá a linha desde as margens da dita Lagoa Mirim, tomando a direção pelo primeiro Arroio meridional, que entra no Sangradouro, ou desaguadouro dela, e que corre pelo mais imediato ao Forte português de São Gonçalo, cujas expressões manifestam clara e evidentemente, como fiz ver a V. Sª. em carta de 25 de março do ano próximo passado [1784], que desde a boca do Taim deve continuar se a linha pelas margens da referida Lagoa e das de seu Sangradouro, até encontrar o Arroio deque se trata o expressado artigo 4º.
Neste conceito, e de que as dúvidas de V. Sª. só giravam sobre, se é ou não o Piratini, o Arroio em questão, propus a V. Sª., em Ofício de 1º de fevereiro último, que havendo se reconhecido já o Sangradouro da Lagoa Mirim e toda a sua costa oriental, seria conveniente assinalar o espaço, ou terreno, pertencente a Coroa de Portugal, com alguns marcos colocados nos pontos mais visíveis dele, ao qual me contestou V. Sª. em carta de 25 do mesmo mês, declarando-me que esta parte da Demarcação pendia da resolução de Suas Majestades Católica e Fidelíssima; e que, por esta razão, não se podia continuar ou concluir.
À vista disto e de que já tenho feito a V. Sª. os correspondentes protestos, sobre a má inteligência que dá aos artigos 3º e 4º do Tratado Preliminar, só me resta dizer que, nos poucos dias que o tenente de navio, D. Diego Albear esteve acampado junto às ruínas do Forte de São Gonçalo, reconheceu o curso do Piratini pelo espaço de 7 ou 8 léguas, em cuja distância achou três Charqueadas e quatro Estâncias, denominadas de Muniz, Cangas, Correa e Pinto e Ferreira [grifo nosso], situadas umas e outras na margem meridional deste Rio; isto é, dentro dos limites da Coroa da Espanha, fundando-se que o Piratini deve servir de limite aos domínios de ambas Nações, por ser o primeiro Arroio Meridional, que entra no Sangradouro da Lagoa Mirim e que corre de imediato ao forte português de São Gonçalo.
V. Senhoria compreenderá que eu não posso ficar indiferente a uma possessão tão injusta e contrária ao artigo 4º do Tratado Preliminar; portanto, requeiro a V. Sª., na forma que me corresponde e devo fazê-lo, para que mande desocupar aqueles terrenos, nos quais não pode haver estabelecimento algum, até que as Cortes esclareçam e resolvam, de comum acordo, todas as nossas dúvidas. [...]”.

Continua...

____________________________________________
Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 4 de dezembro de 2011.

Nenhum comentário: