A.
F. Monquelat
V.
Marcolla
Sim,
se considerarmos a afirmação feita por João Cardoso da Silva,
quando nos diz ser “um dos mais antigos colonos existentes nesta
Capitania; que foi o primeiro que estabeleceu aqui a fábrica de
charques, trazendo, para isso, mestres a sua custa, no ano de 1780”,
como verdadeira.
Considerando
que o dito por João Cardoso foi confirmado pelo Comandante Militar
da Fronteira, Manoel Marques de Souza e outras autoridades envolvidas
na retomada do território continentino, dela não nos cabe outra
alternativa, que não a de aceitá-la como verdadeira. Portanto, foi
João Cardoso, personagem de Simões Lopes Neto em um de seus Contos
Gauchescos,
o primeiro a estabelecer “fábrica de charques” no Continente de
São Pedro.
A
afirmação feita por João Cardoso não é muito clara nem rica em
detalhes, que hoje nos seriam valiosos, pois deixa-nos a dúvida se a
fábrica de charques foi estabelecida antes de 1780 e os mestres é
que vieram neste ano, ou tanto um acontecimento quanto o outro foram
simultâneos.
De
qualquer forma, temos dois fatos importantes: João Cardoso foi o
primeiro a estabelecer charqueada no Continente e o ano, foi 1780.
Vejamos
o que mais disse João Cardoso em outro documento: “que o
Suplicante é um vassalo benemérito, pelos bons serviços que tem
prestado a Sua Alteza Real; que não tem outras terras, senão
aquelas quatro léguas e meia compradas e que é um dos mais antigos
colonos deste Continente, que em grande parte lhe deve o seu aumento
e auge em que se acha, por ter sido ele [João Cardoso] o primeiro
que instituiu aqui [no Continente] a fábrica de carnes de charque,
dando aos [de]mais as idéias e noções necessárias para um ramo
tão vantajoso ao Estado o que é bem conhecido de V. Ex.ª”.
Há
também um terceiro documento, em que João Cardoso, a certa altura,
afirma, novamente, ser ele “um dos mais antigos colonos deste
Continente [e] o primeiro que nele, à minha custa, erigi Fábrica de
Charque, que tanto tem cooperado para o seu aumento [crescimento;
desenvolvimento]”.
Em
trabalho recente, “João
Cardoso: dos contos Gauchescos para a História”,
trabalho este que será publicado, na íntegra, no Almanaque
do Bicentenário de Pelotas,
tratamos do sesmeiro e agro-pecuarista João Cardoso; neste artigo,
estamos acrescentando outras informações sobre o pioneiro da
indústria saladeiril no Continente de São Pedro.
Dentre
as peças que compuseram os “Autos principais do Conselho de Guerra
do Coronel Rafael Pinto Bandeira”, remetidos pelo governador do
Continente, José Marcelino de Figueiredo ao Vice-rei, Luiz de
Vasconcelos e Souza, aparece o nome de João Cardoso em dois
momentos, como uma das testemunhas citadas e inquiridas.
No
primeiro deles, é dito que a “Testemunha João Cardoso da Silva,
soldado da 3ª. Companhia da Cavalaria Ligeira, a folhas 13, diz que
[re]tirara o Comandante 30 ou 40 poldros [potros]”.
Já,
em depoimento bem mais longo, e que João Cardoso é nominado em 11ª.
testemunha, “jurada aos Santos Evangelhos em que pôs a sua mão
direita” prometendo dizer a verdade, disse ter de idade 26 anos.
Bem,
considerando que o depoimento de João Cardoso da Silva foi tomado em
14 de dezembro de 1778, podemos ter o ano de 1752 como provável ano
de seu nascimento.
Prosseguindo
na leitura do depoimento, disse João Cardoso “que marchando da
Encruzilhada com a sua tropa Ligeira, uma Companhia de Dragões e
alguns auxiliares, sendo ao todo uns cento e tantos praças, tendo
por Comandante de todo o Corpo o sargento-mor Rafael Pinto Bandeira,
em direção à Estacada e ao Acampamento de São Martinho, aonde se
encontravam os espanhóis, [...]”; deixamos de reproduzir o resto
do depoimento por não trazer elementos relevantes a este artigo.
As
Estâncias e Charqueadas da Margem Meridional (Sul) do Rio Piratini
Com
o propósito de reforçar nossa tese de que o pioneirismo no
estabelecimento das charqueadas, no Continente de São Pedro do Sul,
deu-se à margem do rio Piratini, mais precisamente no território
onde esteve localizado o antigo forte português denominado de São
Gonçalo, região compreendida nos limites do hoje município de
Arroio Grande, é que fazemos aqui o aporte de alguns documentos,
acreditando que estes possam dar maior clareza e visibilidade ao que
estamos afirmando.
Em
21 de julho de 1785, Luís de Vasconcelos e Souza, Vice-rei do
Brasil, em ofício endereçado ao secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Martinho de Melo e Castro, dava notícias quanto à
reclamação do primeiro comissário espanhol, coronel José Varela y
Ulloa, na qual o referido comissário pedia para que fossem
desalojados os portugueses instalados na margem meridional do Rio
Piratini.
Dizia,
o Vice-rei, que a proposta, ou “reclamação”, era injusta,
escandalosa e feita por quem “não tem autoridade e jurisdição
para a pretender” e baseava-se na simples notícia que lhe dera D.
Diogo de Albear, “seu segundo comissário, de que na margem
meridional do Rio Piratini, se achavam alguns estabelecimentos
portugueses” e por isso pretendiam que aqueles moradores fossem
desalojados imediatamente daqueles terrenos, com o gado e outros
animais que ali possuíam; moradores estes, disse o Vice-rei
português, “que não podendo subsistir noutro lugar ali se
conservam tranqüilamente há
muitos anos junto ao Forte português de São Gonçalo”
(grifo nosso).
Na
continuidade do ofício, entendia o Vice-rei que aquela matéria não
deveria ser tratada daquele modo e nem resolvida de forma rápida,
ainda que a posse daqueles terrenos se achasse duvidosa e pendente da
resolução das duas Cortes; “mas, como ainda no caso de haver
alguma probabilidade de que a referida margem meridional, da Lagoa
Mirim, fosse pertencente à Espanha, não se devia, antes do Tratado
Definitivo dos Limites, conferir aos espanhóis o domínio de
semelhantes terrenos, como eles têm pretendido em outras
Demarcações”.
A
reclamação do comissário espanhol, José Varela y Ulloa, ao nosso
comissário para a Demarcação dos Limites, Sebastião Xavier de
Veiga Cabral da Câmara, foi feita desde o Campo do Taim, aos seis
dias do mês de março do ano de 1785 e, por tratar-se de um
importante documento, com muitas informações sobre as áreas em
disputa pelas duas Coroas, resolvemos, em tradução livre,
transcrevê-la na íntegra: “Meu muito Senhor. No artigo 4º do
Tratado Preliminar de Limites, se estabelece a linha divisória pelo
Arroio do Taim, seguindo pelas margens da Lagoa da Mangueira, em
linha reta até o Mar; e, se diz depois, que pela parte do Continente
irá a linha desde as margens da dita Lagoa Mirim, tomando a direção
pelo primeiro Arroio meridional, que entra no Sangradouro, ou
desaguadouro dela, e que corre pelo mais imediato ao Forte português
de São Gonçalo, cujas expressões manifestam clara e evidentemente,
como fiz ver a V. Sª. em carta de 25 de março do ano próximo
passado [1784], que desde a boca do Taim deve continuar se a linha
pelas margens da referida Lagoa e das de seu Sangradouro, até
encontrar o Arroio deque se trata o expressado artigo 4º.
Neste
conceito, e de que as dúvidas de V. Sª. só giravam sobre, se é ou
não o Piratini, o Arroio em questão, propus a V. Sª., em Ofício
de 1º de fevereiro último, que havendo se reconhecido já o
Sangradouro da Lagoa Mirim e toda a sua costa oriental, seria
conveniente assinalar o espaço, ou terreno, pertencente a Coroa de
Portugal, com alguns marcos colocados nos pontos mais visíveis dele,
ao qual me contestou V. Sª. em carta de 25 do mesmo mês,
declarando-me que esta parte da Demarcação pendia da resolução de
Suas Majestades Católica e Fidelíssima; e que, por esta razão, não
se podia continuar ou concluir.
À
vista disto e de que já tenho feito a V. Sª. os correspondentes
protestos, sobre a má inteligência que dá aos artigos 3º e 4º do
Tratado Preliminar, só me resta dizer que, nos poucos dias que o
tenente de navio, D. Diego Albear esteve acampado junto às ruínas
do Forte de São Gonçalo, reconheceu o curso do Piratini pelo espaço
de 7 ou 8 léguas, em cuja distância achou três
Charqueadas e quatro Estâncias, denominadas de Muniz, Cangas, Correa
e Pinto e Ferreira [grifo
nosso], situadas umas e outras na margem meridional deste Rio; isto
é, dentro dos limites da Coroa da Espanha, fundando-se que o
Piratini deve servir de limite aos domínios de ambas Nações, por
ser o primeiro Arroio Meridional, que entra no Sangradouro da Lagoa
Mirim e que corre de imediato ao forte português de São Gonçalo.
V.
Senhoria compreenderá que eu não posso ficar indiferente a uma
possessão tão injusta e contrária ao artigo 4º do Tratado
Preliminar; portanto, requeiro a V. Sª., na forma que me corresponde
e devo fazê-lo, para que mande desocupar aqueles terrenos, nos quais
não pode haver estabelecimento algum, até que as Cortes esclareçam
e resolvam, de comum acordo, todas as nossas dúvidas. [...]”.
Continua...
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Nota:
Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente
atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 4 de dezembro de 2011.
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