domingo, 18 de dezembro de 2011

RIO PIRATINI: BERÇO DA INDÚSTRIA SALADEIRIL? (3ª e última parte)*





A. F. Monquelat
V. Marcolla

Dissemos há pouco, que a charqueada estabelecida por João Cardoso se deu na área onde, até 1762, esteve instalado o antigo forte português de São Gonçalo.
Este forte, construído e guarnecido no período da expedição que Gomes Freire de Andrada fez às Missões, esteve de pé e em mãos dos portugueses até a guerra de 1762, quando, então, foi invadido e destruído.
A referência mais antiga quanto ao nome de João Cardoso e sua charqueada, nos vem de uma correspondência do sargento-maior, engenheiro D. Bernardo Lecoq dirigida a D. Manuel Cipriano de Melo, datada em Montevideo aos 4 dias do mês de novembro de 1791. Nela, Lecoq informa que em ofício de 22 de outubro do mesmo ano, o Vice-rei daquelas províncias havia lhe dito que, entre as várias prevenções relativas à Demarcação de Limites, de acordo com as Reais Ordens de 11 de julho, o Ministro de Estado, com respeito ao Piratini e os estabelecimentos portugueses em sua banda, havia lhe informado que: para conter os portugueses e apertá-los, de modo que assim não pudessem estender-se à parte do Sul, sem desalojá-los com violência dos estabelecimentos que ali, indevidamente, possuíam, enquanto não se tomassem as medidas necessárias para definir este ponto com a Corte de Lisboa, convinha que o Vice-rei fizesse construir, à moderada distância dos estabelecimentos portugueses, várias Guardas ou Postos de tropa. E que, segundo lhe havia dito o Brigadeiro da Armada Real, D. Jose Varela y Ulloa a quem havia ouvido sobre este e outros pontos relativos à Demarcação que teve a seu cargo, como Comissário Geral da 1ª Partida, poderiam ser três, repartidas de tal forma que ocupassem todo o espaço “que ha desde la charquiada antigua de Juan Cardozo*, hasta las Estancias de José Dutra*, y Bernardo Antunes*, [...]” (grifo nosso).
Acreditamos que os asteriscos colocados após o nome de cada um dos três citados na correspondência de Lecoq, não façam parte do documento original; pois, na parte inferior do referido, há, como nota de rodapé, e em português, algumas observações sobre estes.
A primeira das notas nos diz que: “A charquiada de João Cardoso está situada no idêntico lugar do Forte de São Gonçalo, [...]. O dito Forte, está fundado sobre a ribanceira meridional de um Rio, que lhe corre pelo lado do Norte, ao qual, alguns chamam de Rio São Gonçalo e outros de Piratini, que fica seis léguas antes de chegar à Lagoa Mirim; [...]”.
Sobre José Dutra é dito que é português e “tem, naquele lugar, o seu estabelecimento, assim como muitos outros portugueses [os têm] adiante dele.
Quanto ao terceiro e último dos nominados, Bernardo Antunes, diz a nota tratar-se de um Tenente da Legião que, “naquele lugar tem o seu estabelecimento dentro das vertentes daquele Rio, que uns chamam de Piratini, e outros de São Gonçalo”.
José Dutra da Silva, alferes, casado, morador no Continente do Rio Grande “e nele estabelecido com vultoso número de animais vacuns, cavalares, muares e destes, uma cria de bestas com dez burros exores”, requereu e lhe foi concedida uma sesmaria de terras, que compreendiam uma légua de frente e três de fundo, “entre o Arroio Grande e o do Chasqueiro, confrontando com a Serra do Erval, que primitivamente havia sido concedida ao tenente-coronel Vasco Pinto Bandeira, da qual tem estado de posse há muitos anos [...]”.
O pedido de carta de sesmaria, feito por José Dutra da Silva em 1789, depois de cumpridas as formalidades legais, obteve o “Passe Carta na forma das Ordens” em 17 de abril de 1790.
A Carta de Sesmaria de Bernardo Antunes não conseguimos localizar.
Prosseguindo com as referências encontradas sobre João Cardoso e sua charqueada, a próxima delas é a correspondência que o governador Sebastião Xavier de Veiga Cabral da Câmara enviou, em 17 de novembro de 1791, ao Brigadeiro Comandante do Continente, Rafael Pinto Bandeira onde, encerrando a carta, o Governador afirmava que “os estabelecimentos portugueses que existem ao Sul do Piratini, dentro das suas próprias vertentes, nem todos são tão antigos como a Estância ou Charqueada de João Cardoso, formada [estabelecida] no idêntico sítio em que, há cerca de quarenta anos, foi edificado o forte português de São Gonçalo, [grifo nosso] bastará a V. Sª. saber que a maior parte dos ditos estabelecimentos não são de seu tempo; [pois estes já existiam] muito antes de se falar em Demarcação; [...]”.
Antes de concluirmos, entendemos oportuno, por relevante, dizer que a estância de José Dutra da Silva teve importante papel para manter com segurança e evitar que os estabelecimentos portugueses (charqueadas e estâncias) não fossem desalojados pelos espanhóis; pois nela, e por questões estratégicas, Rafael Pinto Bandeira estabeleceu uma Guarda, o que lhe custou uma recriminação por parte do Governador, ao que, Rafael Pinto Bandeira justificou dizendo que: “A Guarda de São João do Erval acha-se estabelecida em terrenos que o Ilmo. Exmo. Sr. Vice-rei concedeu a José Dutra por Sesmaria; cujo título eu tenho por legítimo. Nestes termos, parece-me que a dita Guarda não está fora dos limites que V. Sª. me manda defender; porém, se é conveniente ao sossego desta Fronteira, que a dita Guarda se mude, prontamente o farei, com expressa ordem de V. Sª.; mas, devo dizer, que todas as partidas [grupos de gente armada] espanholas que chegam àquela Guarda, trazem ordem para irem até a barra do Piratini, o que não fazem, por respeitarem a dita Guarda; mas, se ela se mudar, certamente que irão cumprir com a ordem que trazem.
Eu tenho demorado na execução dos despachos, porque V. Sª. manda dar posse às Sesmarias concedidas no Jaguarão chico e se lá forem estabelecer-se os donos dessas Sesmarias, que são vassalos portugueses, tenho eu obrigação de defendê-los e cobrí-los com Guardas, segundo as Ordens de V. Sª., e nesse caso, mais razão terá o Vice-rei de Buenos Aires de reclamar. [...]. Rio Grande de São Pedro, 12 de dezembro de 1791. Rafael Pinto Bandeira”.
Concluindo, e diante dos documentos expostos, podemos aventar duas hipóteses: uma, é a de que João Cardoso foi realmente o primeiro a instituir estabelecimento de indústria saladeiril no Continente e, ao redor de sua charqueada surgiram outras, graças “às idéias e noções necessárias” que deu aos demais; a outra, é a de que, caso venha a ser provado documentalmente que José Pinto Martins estabeleceu sua primeira charqueada no mesmo ano, o de 1780, à margem direita do Arroio Pelotas, teríamos, então, dois precursores e dois pólos saladeiris. Um na margem direita do Arroio Pelotas e outro na margem meridional do Rio Piratini; mas, até prova em contrário, João Cardoso da Silva é o pioneiro a instituir “fábrica de carnes de charque” no Continente do Rio Grande de São Pedro e, portanto, Arroio Grande, e não Pelotas, foi o berço desta indústria.


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Nota: Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 18 de dezembro de 2011.

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