A.
F. Monquelat
V.
Marcolla
Dissemos
há pouco, que a charqueada estabelecida por João Cardoso se deu na
área onde, até 1762, esteve instalado o antigo forte português de
São Gonçalo.
Este
forte, construído e guarnecido no período da expedição que Gomes
Freire de Andrada fez às Missões, esteve de pé e em mãos dos
portugueses até a guerra de 1762, quando, então, foi invadido e
destruído.
A
referência mais antiga quanto ao nome de João Cardoso e sua
charqueada, nos vem de uma correspondência do sargento-maior,
engenheiro D. Bernardo Lecoq dirigida a D. Manuel Cipriano de Melo,
datada em Montevideo aos 4 dias do mês de novembro de 1791. Nela,
Lecoq informa que em ofício de 22 de outubro do mesmo ano, o
Vice-rei daquelas províncias havia lhe dito que, entre as várias
prevenções relativas à Demarcação de Limites, de acordo com as
Reais Ordens de 11 de julho, o Ministro de Estado, com respeito ao
Piratini e os estabelecimentos portugueses em sua banda, havia lhe
informado que: para conter os portugueses e apertá-los, de modo que
assim não pudessem estender-se à parte do Sul, sem desalojá-los
com violência dos estabelecimentos que ali, indevidamente, possuíam,
enquanto não se tomassem as medidas necessárias para definir este
ponto com a Corte de Lisboa, convinha que o Vice-rei fizesse
construir, à moderada distância dos estabelecimentos portugueses,
várias Guardas ou Postos de tropa. E que, segundo lhe havia dito o
Brigadeiro da Armada Real, D. Jose Varela y Ulloa a quem havia ouvido
sobre este e outros pontos relativos à Demarcação que teve a seu
cargo, como Comissário Geral da 1ª Partida, poderiam ser três,
repartidas de tal forma que ocupassem todo o espaço “que
ha desde la charquiada antigua de Juan Cardozo*, hasta las Estancias
de José Dutra*, y Bernardo Antunes*,
[...]” (grifo
nosso).
Acreditamos
que os asteriscos colocados após o nome de cada um dos três citados
na correspondência de Lecoq, não façam parte do documento
original; pois, na parte inferior do referido, há, como nota de
rodapé, e em português, algumas observações sobre estes.
A
primeira das notas nos diz que: “A charquiada de João Cardoso está
situada no idêntico lugar do Forte de São Gonçalo, [...]. O dito
Forte, está fundado sobre a ribanceira meridional de um Rio, que lhe
corre pelo lado do Norte, ao qual, alguns chamam de Rio São Gonçalo
e outros de Piratini, que fica seis léguas antes de chegar à Lagoa
Mirim; [...]”.
Sobre
José Dutra é dito que é português e “tem, naquele lugar, o seu
estabelecimento, assim como muitos outros portugueses [os têm]
adiante dele.
Quanto
ao terceiro e último dos nominados, Bernardo Antunes, diz a nota
tratar-se de um Tenente da Legião que, “naquele lugar tem o seu
estabelecimento dentro das vertentes daquele Rio, que uns chamam de
Piratini, e outros de São Gonçalo”.
José
Dutra da Silva, alferes, casado, morador no Continente do Rio Grande
“e nele estabelecido com vultoso número de animais vacuns,
cavalares, muares e destes, uma cria de bestas com dez burros
exores”, requereu e lhe foi concedida uma sesmaria de terras, que
compreendiam uma légua de frente e três de fundo, “entre o Arroio
Grande e o do Chasqueiro, confrontando com a Serra do Erval, que
primitivamente havia sido concedida ao tenente-coronel Vasco Pinto
Bandeira, da qual tem estado de posse há muitos anos [...]”.
O
pedido de carta de sesmaria, feito por José Dutra da Silva em 1789,
depois de cumpridas as formalidades legais, obteve o “Passe Carta
na forma das Ordens” em 17 de abril de 1790.
A
Carta de Sesmaria de Bernardo Antunes não conseguimos localizar.
Prosseguindo
com as referências encontradas sobre João Cardoso e sua charqueada,
a próxima delas é a correspondência que o governador Sebastião
Xavier de Veiga Cabral da Câmara enviou, em 17 de novembro de 1791,
ao Brigadeiro Comandante do Continente, Rafael Pinto Bandeira onde,
encerrando a carta, o Governador afirmava que “os estabelecimentos
portugueses que existem ao Sul do Piratini, dentro das suas próprias
vertentes, nem todos
são tão antigos como a Estância ou Charqueada de João Cardoso,
formada [estabelecida]
no idêntico sítio em
que, há cerca de quarenta anos, foi edificado o forte português de
São Gonçalo, [grifo
nosso] bastará a V. Sª. saber que a maior parte dos ditos
estabelecimentos não são de seu tempo; [pois estes já existiam]
muito antes de se falar em Demarcação; [...]”.
Antes
de concluirmos, entendemos oportuno, por relevante, dizer que a
estância de José Dutra da Silva teve importante papel para manter
com segurança e evitar que os estabelecimentos portugueses
(charqueadas e estâncias) não fossem desalojados pelos espanhóis;
pois nela, e por questões estratégicas, Rafael Pinto Bandeira
estabeleceu uma Guarda, o que lhe custou uma recriminação por parte
do Governador, ao que, Rafael Pinto Bandeira justificou dizendo que:
“A Guarda de São João do Erval acha-se estabelecida em terrenos
que o Ilmo. Exmo. Sr. Vice-rei concedeu a José Dutra por Sesmaria;
cujo título eu tenho por legítimo. Nestes termos, parece-me que a
dita Guarda não está fora dos limites que V. Sª. me manda
defender; porém, se é conveniente ao sossego desta Fronteira, que a
dita Guarda se mude, prontamente o farei, com expressa ordem de V.
Sª.; mas, devo dizer, que todas as partidas [grupos de gente armada]
espanholas que chegam àquela Guarda, trazem ordem para irem até a
barra do Piratini, o que não fazem, por respeitarem a dita Guarda;
mas, se ela se mudar, certamente que irão cumprir com a ordem que
trazem.
Eu
tenho demorado na execução dos despachos, porque V. Sª. manda dar
posse às Sesmarias concedidas no Jaguarão chico e se lá forem
estabelecer-se os donos dessas Sesmarias, que são vassalos
portugueses, tenho eu obrigação de defendê-los e cobrí-los com
Guardas, segundo as Ordens de V. Sª., e nesse caso, mais razão terá
o Vice-rei de Buenos Aires de reclamar. [...]. Rio Grande de São
Pedro, 12 de dezembro de 1791. Rafael Pinto Bandeira”.
Concluindo,
e diante dos documentos expostos, podemos aventar duas hipóteses:
uma, é a de que João Cardoso foi realmente o primeiro a instituir
estabelecimento de indústria saladeiril no Continente e, ao redor de
sua charqueada surgiram outras, graças “às idéias e noções
necessárias” que deu aos demais; a outra, é a de que, caso venha
a ser provado documentalmente que José Pinto Martins estabeleceu sua
primeira charqueada no mesmo ano, o de 1780, à margem direita do
Arroio Pelotas, teríamos, então, dois precursores e dois pólos
saladeiris. Um na margem direita do Arroio Pelotas e outro na margem
meridional do Rio Piratini; mas, até prova em contrário, João
Cardoso da Silva é o pioneiro a instituir “fábrica de carnes de
charque” no Continente do Rio Grande de São Pedro e, portanto,
Arroio Grande, e não Pelotas, foi o berço desta indústria.
____________________________________________
Nota:
Os documentos transcritos são paleografados e ortograficamente
atualizados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 18 de dezembro de 2011.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 18 de dezembro de 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário