sábado, 14 de janeiro de 2012

O POVOAMENTO DE PELOTAS (36)*


A. F. Monquelat
V. Marcolla

As Datas e Sesmarias na Serra dos Tapes e São Lourenço do Sul

José Cardoso de Gusmão, o Alferes Charqueador

Dissemos que a novidade que queríamos acrescentar, aos escassos dados sobre o alferes José Cardoso de Gusmão, era a de que este exerceu as atividades de charqueador.
Também queremos, a partir desta afirmação, fazermos algumas especulações quanto ao ato de charquear, e o estabelecer charqueada.
Vimos, segundo Gutierrez, que o tenente João Francisco Vieira Braga, no ano de 1802, vendeu ao alferes José Cardoso de Gusmão uma área de terras localizada entre o Logradouro Público e o Arroio Pelotas. Área esta, que o Alferes, aos 15 dias do mês de setembro de 1808, transferiu a Boaventura Rodrigues Barcelos.
Importante é lembrar que a área, adquirida pelo Alferes, estava localizada na região onde houve a maior concentração de charqueadas em Pelotas.
Bem, é evidente que o fato de José Cardoso de Gusmão ter adquirido uma porção de terras entranhadas no polo saladeiril, por si só, não o transforma em charqueador; porém, se acrescentarmos à compra feita o bilhete que o Alferes, aos 22 dias do mês de março de 1804, enviou ao tenente João Francisco Vieira Braga, podemos documentar tal atividade.
Diz o bilhete, em sua essência, o seguinte: “Amigo e Senhor, tenente João Francisco Vieira Braga: por André de Sá, recebi a folha de tabaco, que vosmecê fez a mercê [de enviar], o que lhe agradeço o cuidado de o procurar bom [de boa qualidade].
Já a vosmecê, eu creio que tenha sido entregue o Negro e [esteja] satisfeito com sua eleição [escolha].
Na canoa Santa Rosa, há de ir a graxa que vosmecê pediu; pois, está pronta. E se mais quiser, mande dizer. Também quero que vosmecê não se descuide de ver se acha comprador de xarques; pois, se os ver, quero que [a]juste duas mil @, pois agora me chegou 2 tropas, que faço conta [ideia] matar parte dela antes de [a]justa[da]; e depois, há de vir outra e não tenho feito ajuste nenhum. Dizem é que está a chegar o Cipriano, com quem fiz negócio o ano passado; se vosmecê tiver ocasião de falar com ele, veja se [a]justa. [...]” (grifos nossos).
Cremos, a partir do conteúdo do bilhete do Alferes ao Tenente, não restar dúvida quanto a José Cardoso de Gusmão ter estabelecido charqueada, o que o diferencia daqueles que praticaram o ato de charquear.

Entre o Charquear e o Estabelecimento das Charqueadas

E por demais evidente que muitos homens na ocupação e formação do território do Continente de São Pedro praticaram, por necessidade, o ato de charquear; entretanto, isto não os tornou ou torna charqueadores.
Não fosse assim, a indústria saladeiril no Rio Grande do Sul teria florescido nos primórdios do seu desbravamento; e isto, nos levaria à primeira década do século XVIII. Daí, fazermos a distinção entre o charquear, e o estabelecer charqueada.
O primeiro, já o dissemos, foi praticado por necessidade, de forma casual e nômade. O outro, com o propósito fixo e de lucro comercial.
Portanto, baseados neste princípio é que afirmamos ter sido charqueador o alferes José Cardoso de Gusmão.
Considerando que a reocupação de parte do nosso território deu-se a partir do ano de 1776, é que podemos dizer que, desde então, começa oficialmente a concessão destas terras.
A alguns, bastou legalizar o extra oficialmente concedido em tempos de incerteza; a outros, foi preciso encontrar rincões apropriados para os objetivos pretendidos.
Nessa corrida às terras, melhor aquinhoados, sem dúvida, foram os militares; seguidos, em menor proporção, pelos burocratas da Coroa.
Embora incultos, e de poucas letras, conheciam muito bem os canais do poder, e o modo de pedirem aquilo que lhes convinha. O modelo empregado nos requerimentos, quase um padrão, era repleto de lamúrias e acompanhado da promessa de, após lhe fosse concedido o objeto requerido, tratarem de confirmá-lo junto à Corte, o que raras vezes era cumprido. Tal, e propositado descumprimento, tinha por objetivo evitar o processo de medição e demarcação, que não lhes convinha fosse feito; não somente para evitar o custo processual, cujo ônus lhes cabia; mas, e principalmente, porque não lhes interessava que fossem conhecidas as verdadeiras dimensões de suas terras, quase sempre maiores do que aquelas por eles indicadas.
Na tentativa de freiar e moralizar a escandalosa e pouco honesta corrida às terras, resolveu o governador José Marcelino de Figueiredo, em 10 de fevereiro de 1780, através de um “Bando” [Proclamação, anúncio público] realizado ao “som de caixa” [ao toque de tambor], cujo conteúdo, nos informa: “Domingos de Lima Veiga, Escrivão da Fazenda e matrícula da gente de guerra nesta Capitania de São Pedro do Rio Grande: Certifico, que revendo o Livro quarto do Registro geral desta Provedoria, a folhas cento e setenta e uma, verso, se acha registado o Edital, de que faz menção a portaria supra, o qual, é do teor seguinte: O Governador do Rio Grande, seu Continente e Fronteiras, pela Rainha Nossa Senhora e etecétera. Porquanto me faculta o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Vice-rei do Estado, em ofício de vinte e cinco de novembro passado [1779], repartir os campos destas Fronteiras cedidos no Tratado definitivo da última Paz, e me consta que, muita parte deles está tomada em posses muito maiores, que o que permitem as Reais Ordens, ainda quando fossem legítimas; pois, não pode haver sesmaria que exceda de três léguas de comprido, e uma de largo. Faço saber a todos os moradores deste Continente, que quiserem pedir terras ou que se lhes confiram [concedam] as de que estão de posse para povoarem-nas e as cultivarem na forma das Ordens de Sua Majestade, hajam de fazer-me petição dentro de um mês; quanto aos que já tiverem posse [quando] da publicação deste Edital, declarando o seguinte: A família que tiver o suplicante, e as possibilidades [que tem] para Estancieiro; quantas léguas de terra pretende ou possui, e desde quando se meteu na posse delas; quantos animais têm nelas ou têm para meter-lhes, e de que qualidade; com quem confrontam ditas terras, e em que sítio se acham e que serviços têm feito a Sua Majestade para serem atendidos com preferência; declarando se tem tido ou tem outras sesmarias, por compras ou posse se já as tiveram, para quem as venderam ou transpassaram. Os requerimentos, que se fizerem na sobredita forma, virão logo informados pelos Comandantes das Fronteiras, ou dos lugares onde se pedirem as terras; declarando o que constar sobre ditos requerimentos e se os pais, filhos ou irmãos, dos que pedirem sesmarias, têm outras posses imediatas as mesmas [que forem] pedidas ou em outras partes.
Tudo o sobredito, com a cominação de que, não acudindo dentro do tempo assinalado, por si ou por seus procuradores, se julgar de nenhum valor qualquer posse; e se proceder contra os que, desobedientemente se pretenderem conservar intrusos; e o mesmo procedimento se terá, contra os que, depois da publicação deste Edital, se apossarem de campos, sem licença minha ou de Ordem superior. E para que chegue a notícia [conhecimento] de todos, mandei fazer diferentes [cópias] deste Edital, para se remeterem, afixarem e publicarem nas Fronteiras e Povoações principais deste Continente. Registre-se na Provedoria e Câmara do mesmo Continente, este, para sempre constar. [...]”.


Continua...

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Nota: Os documentos transcritos foram atualizados e paleografados pelos autores.
* Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã, no dia 15 de janeiro de 2012.

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