sexta-feira, 14 de maio de 2010

JOSÉ PINTO MARTINS, O CHARQUE E PELOTAS



A. F. Monquelat
V. Marcolla


Desde o primeiro dia da divulgação de nosso artigo sobre “O Povoamento de Pelotas”, aqui no DM, publicado em 21 de março de 2010, amigos e conhecidos que o leram fizeram a mesma observação; a de que “estávamos negando a precedência de José Pinto Martins na fundação da cidade de Pelotas”.
A resposta que lhes demos foi: “Sim, e não”. E esta está implícita no corpo do artigo.
De qualquer forma, neste novo artigo, procuraremos explicitá-la; porque é provável que outros tenham pensado o mesmo.
A concepção da precedência, atribuída ao português José Pinto Martins, remete-nos a pelo menos dois outros sinônimos, quais sejam: prioridade e primazia. E estes, a dizer que um e outro podem ser compreendidos como a qualidade do que está em primeiro lugar. Ora, dissemos nós que “a história de uma cidade é a história da pluralidade de seus habitantes e cidadãos”. Que, por sua vez, também pode ser entendido que o surgimento e a origem da maioria das cidades não está relacionado a um único nome. E que Pelotas não é um caso à parte. Portanto, sua fundação não se deve tão somente ao nome de José Pinto Martins e muito menos à primitiva charqueada deste.
Pelotas, voltamos a dizer, é fruto do agro-pastoreio. E esta afirmação procuraremos deixar mais evidente no decorrer de nosso trabalho sobre o “O Povoamento de Pelotas”. Porém, aproveitamos o momento para tentarmos explicar a procedência dessa insistência de associarem o nome de Pinto Martins à fundação de Pelotas.
É bastante provável que o ponto de origem ou a fonte primaria seja João Simões Lopes Neto, quando nos fala sobre Pinto Martins, ao divulgar sua “Revista do 1º Centenário de Pelotas” nos anos de 1911 e 1912. E cujo legado, parcial, é o de que: “Por 1777/80, vindo do Ceará, aportou ao Rio Grande um homem que conhecia o fabrico da carne do sertão [...] por um processo garantidor da sua longa conservação: a salgação, a enxerca ou enxarque da carne. Esse obscuro industrial, que não deixou – que saibamos – de si outra notícia, esse, mesmo sem a consciente previsão do alcance do seu cometimento, esse foi José Pinto Martins, a quem cabe a precedência na fundação da futura cidade” (grifos nossos).
E logo a seguir, nos diz Simões Lopes que, “Sabe-se que em 1780, numa parte dos terrenos de Manoel Carvalho de Souza (Arroio Pelotas), fundou José Pinto Martins, vindo do Ceará [...], uma charqueada” (LOPES NETO, 1994, p. 17, grifo do autor).
Teríamos, se quiséssemos, vários pontos de divergência quanto às afirmações feitas por Simões Lopes; mas, abordaremos apenas aqueles que nos parecem mais relevantes, quais sejam: A) a afirmação feita sobre precedência na fundação da futura cidade de Pelotas; B) a diferença no charqueio, ou fabrico, entre a carne-do-sertão (carne-de-sol) e a carne-do-sul ou charque; C) quanto ao ano de instalação da charqueada de Pinto Martins, que, diz Simões Lopes, ter se dado em 1780, e “numa parte dos terrenos de Manoel Carvalho de Souza”.
Ainda que a história não seja o ponto alto da obra do regionalista João Simões, é inconsequente negar o mérito dos apontamentos históricos, que Lopes Neto nos legou, nos quais, e por primeira vez, vamos encontrar o arrolamento das charqueadas de Pelotas.
Para que Pinto Martins tivesse a primazia de precedente, que lhe imputam, seria necessário ter chegado ao Arroio Pelotas (no terreno compreendido pela área da Sesmaria do Monte Bonito) trazendo gado, sal e mão de obra, o que obviamente não aconteceu.
Pinto Martins se estabeleceu, e para isso teria de ter permissão, dizem que em terreno do tenente Manoel Carvalho de Souza, o que entendemos pouco provável. Acreditamos, no caso de realmente ter sido no ano de 1780, o ano que Pinto Martins instalou a sua primitiva charqueada, que o fez por permissão do padre Pedro Pires da Silveira, que a tinha adquirido, através de escritura pública, em 7 de março de 1780, ou por permissão do, na época, alferes Antônio Ignacio da Silveira, que a comprara do padre Pedro Pires da Silveira em 4 de abril de 1781. Não estranhamos de o transpasse de um sesmeiro para outro não ter constado em registro ou confirmação da presença de Pinto Martins e sua charqueada; porque, a presença de charqueadas na Sesmaria era um fato de pouca importância ao sesmeiro, que tal permissão concedia por contrato, quando não parentes; ou permissão pura e simples no caso de vínculo familiar. As instalações de uma charqueada ou fábricas de carnes, naquele período, eram tão rústicas e insignificantes, que qualquer valor a elas atribuído seria por demais irrisório.
Ressalve-se que esta afirmação cabe e deve ser entendida e aplicada para a fase inicial das charqueadas; principalmente às charqueadas instaladas em terras de terceiros, que era o caso da maior parte delas.
Bem, mas o que pretendemos mesmo dizer é que, caso Simões Lopes tenha mesmo pretendido dizer o que disse, ou o que por ele nos parece ter sido dito, não observou que ao dizê-lo, disse, trazendo no próprio dito a negação do que estava a dizer; pois ninguém pode ter precedência no caso em foco, quando, para isto, está instalado “numa parte dos terrenos de Manoel Carvalho de Souza”. O que é uma contradição. Caso essa precedência seja uma referência ao fato da incipiente charqueada de Pinto Martins ter servido de pedra fundamental no surgimento e desenvolvimento da Pelotas urbana, é ter, Simões Lopes, dado importância maior à pouca importância que teve Pinto Martins e sua charqueada num populoso ambiente agro-pastoril já existente quando neste chegou.
Um ponto nas afirmações feitas por Simões Lopes é o que realmente nos inquieta: de onde será que Simões tirou a data de 1780 como ano de instalação da primitiva charqueada de Pinto Martins?
E tal indagação nos conduz à outra: por que será que a historiografia tomou o ano de 1780 como data de referência, sem questionar a origem da informação feita por Simões Lopes Neto?
Quando, no máximo, deveria ter pego esta data de 1780 como um indício; jamais como prova ou certeza.
Deixamos aqui, novamente, a pergunta: de onde tirou Simões Lopes Neto tal afirmação? E não esqueçam que Manoel Carvalho de Souza transpassou toda a Sesmaria ao padre Pedro Pires da Silveira em 7 de março de 1780.

Deixamos propositadamente o ponto B das três divergências, que nos propusemos a dialogar com Simões Lopes Neto, quanto aos seus apontamentos históricos no que diz respeito à figura de José Pinto Martins, por último, porque, em nosso entender, é o mais importante deles.
Disse Simões Lopes que: “Por 1777/80, vindo do Ceará, aportou ao Rio Grande um homem que conhecia o fabrico da carne do sertão [...] por um processo garantidor da sua longa conservação: a salgação, a enxerca ou enxarque da carne”.
Vejamos primeiro o que era o conhecimento de Pinto Martins quanto ao fabrico da carne. Salgação, enxerca ou enxarque são sinônimos; portanto, são três palavras para designar o mesmo conhecimento ou técnica, embora a palavra mais apropriada, no caso, seja enxarque.
Daí, optarmos por enxarque para esclarecer que é o mesmo que charque, mas no caso de Pinto Martins, há uma diferença, pequena, mas há; pois a carne-do-sertão ou carne-de-sol é o processo de enxercar a carne, ou fazê-la em mantas e tassalhos, e secá-la ao sol.
Até aí, nada de novo no conhecimento de Pinto Martins; mas, pela forma que Simões Lopes Neto escreveu sobre o tal conhecimento: o “processo garantidor da sua longa conservação”, fica-nos a impressão de que Simões Lopes Neto pouco sabia sobre a história do charque na região do Continente do Rio Grande e regiões do Prata.
E é um pouco desta história, que pretendemos, ainda que de forma concisa, a partir de agora, explicar.
A história do charque, na sua universalidade, é pouco provável que venha a ser escrita, e caso seja feita, é possível que esta inicie a ser contada a partir do ano de 1476, onde aparece por primeira vez e “se cita enxerca, do c. 49 dos Art. das Sisas, de 27 de setembro de 1476”.
Saltando da Europa para o Rio da Prata, vamos encontrar uma permissão concedida por Felipe III, em 1602, na qual as províncias do Rio da Prata podiam, por um período de seis anos, extrair frutos de sua colheita e exportá-los em navios próprios “num total de [...] 500 quintales [um quintal = 4 @ espanholas] de cecina e 500@ de sebo [...]”.
Cecina é o charque envolto em graxa e posto em barricas. Tempos depois, charque e cecina foram substituídos por tasajo.
Este sistema de embarricar carnes era a forma usada pelos irlandeses, que durante longo tempo foram os principais abastecedores das Armadas Reais.
Por não conhecermos bibliografia sobre o tipo de charque produzido pelos irlandeses, ficamos em dúvida quanto à técnica usada por eles; mas acreditamos seja o processo de moura, que consistia em acrescentar ao charque embarricado o licor formado pelo sal desfeito, uma espécie de salmoura.
A técnica desenvolvida pelos irlandeses foi motivo de admiração e inveja de muitos que se aventuraram nesta atividade saladeiril.
Entre os espanhóis saladeristas consta-nos ter sido Don Francisco de Medina o primeiro a conseguir em seu saladero, através da instalação de um laboratório montado no estabelecimento, dirigido por técnicos irlandeses, esta façanha.
Tal feito, segundo palavras do Vice-rei Nicolás de Arredondo, ao falar sobre tal, é que Medina, no ano de 1787, “havia descoberto o segredo e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência das do Norte”. Em nada mais consistia – acrescentou o monarca em relação à forma vencedora – que em sublimar “la salmuera del barril con una corta dosis de sal nitro” (MONQUELAT, 2009, p. 95).
Já, com relação aos Portugueses em seus domínios na América do Sul, podemos dizer que a história do charque, pelo menos até então, teve necessariamente de passar pela Colônia do Sacramento. Isto, no final do Século XVII, graças às exitosas experiências realizadas pelo governador Francisco Naper e continuadas no início do século seguinte por Sebastião Xavier da Veiga Cabral, quando atingindo elevados níveis de produção, tornou possível exportar tais carnes para o Brasil e Portugal.
Antes de vermos o charque no Continente de São Pedro, gostaríamos de lembrar que, anterior ao período da colonização espanhola, os indígenas da América do Sul preparavam o charqui ou charque, carne secada ao sol, sem agregar sal, o qual se chamou também de charque doce, em oposição ao tasajo ou charque salgado, preparado com sal (GIBERTI, 1970, p. 26).
No Continente do Rio Grande, parece que tal atividade se deu por volta da terceira década do Século XVIII, na região do Quintão, jurisdição de Tramandaí.
Considerando que o tema das charqueadas ainda é um objeto por explorar com maior profundidade, pois o que até agora surgiu, surgiu de maneira incipiente, pretendemos a lo largo, colaborarmos com um trabalho, provisoriamente titulado de “Apontamentos para uma história das charqueadas do Continente de São Pedro do Sul”, e é deste trabalho que tiramos os seguintes dados: “Francisco Lopes, morador da Vila do Rio Grande, recebeu do governador Gomes Freire de Andrada em uma Carta de Sesmaria, datada de 19 de maio de 1752, uns campos devolutos na paragem denominada o Retovado, com três léguas de comprido e uma de largo, que partiam pela banda do Sul, com os Morros Vermelhos e a porteira do Carro; e pela parte do Norte, com a Fazenda de Manoel Jorge, chamada a Charquiada (sic); pela banda de leste com as praias do Mar Grosso; e pela parte do Oeste com a Fazenda do Carro.
Outro confrontante de Manoel Jorge e da Estância chamada a Charquiada (sic) era Domingos Fernandes de Oliveira, que também recebeu de Gomes Freire de Andrada, em 25 de agosto de 1755, uma Carta de Sesmaria em cujo corpo consta que ele, Domingos Fernandes de Oliveira, estava de posse da Estância chamada do Quintão, que povoara com grande número de gado cavalar, e que confrontava pelo Sul com a estância chamada a Charquiada (sic), cujo proprietário era Manoel Jorge” (MONQUELAT e MARCOLLA, s/d, grifos nossos).
Concluindo, lembramos que em nosso artigo publicado em 21 de março de 2010, sobre o povoamento de Pelotas, dissemos que: “Charquear, no Continente do Rio Grande, já era prática estabelecida desde os primórdios do Século XVIII. E, nesta região, tal hábito antecede à chegada do Brigadeiro José da Silva Paes, como se pode ver na carta enviada a Gomes Freire de Andrada em 12 de março de 1737: ‘Porque há aqui uma tal praga de bichos, que chamam de traça, que tem arruinado vestidos, roupas e sapatos bem como o cartuchame. Este bicho come não só o papel, mas também a pólvora e ainda por ele vi até balas roídas. Quem aqui fosse nojento comeria muito pouco, porque são eles em tamanha abundância que estão caindo no prato por estarem as barracas cheias deles e de moscas que é uma imensidade. Tudo nascido do charque que aqui faziam [...].’ (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010, p. 96, grifos nossos)”.
Agora nos perguntamos: José Pinto Martins trouxe alguma novidade para ensinar através de seu conhecimento do “fabrico de carne do sertão [...] ou processo garantidor da sua longa conservação” aos paisanos e militares, já experientes, desta região?






Referências


GIBERTI, H. C. E. Historia económica de la ganadería argentina. Buenos Aires: Ed. Solar/Hachette, 1970.

LOPES NETO, J. S.
Apontamentos referentes à história de Pelotas e outros dois municípios da Zona Sul: São Lourenço e Canguçu. Pelotas: Armazém Literário, 1994.

MONQUELAT, A. F.
Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F.
Senhores da Carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed. Universitário/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V.
O desbravamento do Sul e a ocupação castelhana. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2010.

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V.
O povoamento de Pelotas. vol. 1 e 2. Pelotas, 2010. (no prelo).

MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V.
Apontamentos para uma história das charqueadas do Continente de São Pedro do Sul. s/d. (mimeo).

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